Belo Horizonte, a Capital V
Igreja da Pampulha - São Fracnisco de Assis
Depoimento da Igreja São Francisco de Assis
Eu sou uma igrejinha. Fui rejeitada tão logo
nasci. Sou igrejinha, mas não sou capela. Digo sem petulância: sou
esteticamente inovadora, digna representante da vanguarda modernista. Paguei
caro por isso. Digo mais: sou bonita. Posso dizer meu nome?
Eu sou a Igrejinha da Pampulha, a Igrejinha de
São Francisco de Assis da cidade de Belo Horizonte. Revelo meus traços
biográficos, pois me considero hoje, integrante da Mitra Arquidiocesana da
cidade.
Fui concebida pelo então prefeito, Juscelino
Kubitschek de Oliveira, na década de 1940, e projetada por um tal de Oscar
Niemeyer, jovem e ousado arquiteto que ninguém conhecia na época.
Pois esse arquiteto, com sua gangue de
profissionais, fez surgir um arrojado projeto arquitetônico para ser implantado
na região da Pampulha. Éramos quatro irmãos que viriam a nascer na região. Meu
irmão mais velho, o Cassino, foi festejado logo ao nascer e jogava dinheiro a
rodo nas suas roletas. Em seguida, surgiu o Iate Golfe Clube que foi logo
apossado pela alta sociedade. Em terceiro lugar, veio a Casa do Baile,
majestosa e irreverente. Finalmente, eu, a caçula. Pequena e humilde, mas
arrojada, me instalei frente à grande represa de 18 km de perímetro. Grande e
silenciosa é essa lagoa. Toda lagoa é silenciosa. Não como os rios que são
cavalos em fúria, disparados para o mar. Fiquei em paz com essa lagoa.
Ainda informo que um jovem artista plástico,
de nome Cândido Portinari, veio e me cobriu com azulejos de cor azul e branca,
cheios de aves e peixinhos do mar. Lancei moda, claro. Entretanto, no meu
interior, ele pegou seu pincel e foi me decorando. Pintou um mural atrás do
altar em homenagem ao meu patrono, um tal de São Francisco de Assis, santo
pobretão, protetor de gente pobre e de animais. Fiquei nessa de ser protegida
por santo pobre. Minha sina. Ainda por cima, ele desenhou um santo de olhos
muito arregalados, mãos rudes, num tom marrom, meio apagado. Ainda, em vez dos
lobos de São Francisco, resolveu desenhar um cachorro amarelo, sentado, em
transe de escuta total, admirando a figura do santo. Foi minha sina.
O prefeito, todo contente comigo, convidou o
arcebispo da cidade para combinar o meu batismo.
Mural de Portinari na parte posterior externa
Estava me esquecendo de contar que o tal de Portinari ainda pintou os quadros da Via Sacra, quer dizer, o caminho de Jesus até a sua crucificação, e todos esses quadros dentro do modelo modernista avançado. Também o prefeito encomendou ao escultor Ceschiatti o batistério em bronze pra mim. Se não houvesse batistério, como é que eu poderia ser batizada?
Pois assim foi. O arcebispo gostou de tudo que
via à minha volta. Sorria e o prefeito ficava cada vez mais empolgado comigo.
Ele gostava muito de mim e sempre me prestigiou demais. Entretanto, quando o
arcebispo entrou no interior, foi logo sentindo um baque emocional. O rosto dele
crispou. Seu sorriso apagou quando viu a cara e os braços de São Francisco. Não
foi só. Concentrou sua visão no tal cachorro amarelo, no fundo do altar, no
grande painel maravilhoso. Quase caiu pra trás. Repudiou tudo e disse palavras
horrorosas para o prefeito. Despediu grosseiramente e tirou o time de campo.
Agora, quem estava desolado era o meu querido protetor, o prefeito.
Com isso, não fui batizada. Fiquei 17 anos
condenada. O arcebispo foi claro e categórico: “Nunca, nada, nessa caixa do
Juscelino.” Foi um gol contra!
Foi o meu desastre.
Agora digo que o prefeito esperou esses 17
anos silenciosamente. Quando faltava um ano para terminar o seu mandato como
presidente da República, articulou-se como o novo arcebispo, dom João de
Resende Costa, para me salvar das garras da condenação e alcançar o meu batismo
efetivo, dentro da santa madre Igreja. Dom João foi claro. Vou consultar e dou
resposta. Tudo certo.
O presidente tinha prometido a minha doação à
Mitra Arquidiocesana. Seria a minha salvação, a minha glória. Eu estava ficando
velha, sem fazer nada nesta vida. Marcaram o dia do meu batismo com inauguração
solene, marcada para o dia 11 de abril de 1959. Eu me enfeitei toda, arrogante
e maravilhada, como sempre. Essa doação foi aprovada pela Câmara de Belo
Horizonte, mediante proposta do vereador Celso Melo de Azevedo, por unanimidade.
O atual prefeito, Amintas de Barros, sancionou a lei de doação, imediatamente. Agora,
senti firmeza.
Chegou a hora do meu batismo. A população de
Belo Horizonte compareceu e fez-se uma multidão ao redor de mim. Perdi o
fôlego. Eu sou pequena, e a entrada teve que ser restringida a autoridades
civis, religiosas e militares. Todas as bancadas estavam cheias de gente de
alto gabarito.
O presidente estava no primeiro banco. Dom
João de Resende Costa iria celebrar uma missa no meu altar, pela primeira vez
da minha vida. Coral e cantores escolhidos.
Sim... Tudo elegantemente dimensionado. Algumas palavras de entusiasmo do presidente
e dom João iniciou a celebração da missa. Silêncio, concentração, meditação,
louvor a Deus, a Jesus, ao meu patrono São Francisco de Assis. Tudo certinho e
emocionante.
Eis senão quando, no momento mais efusivo da
santa missa, entra pela nave principal um cachorro, vindo não se sabe de onde.
Penetrou na igreja e, atravessando a pequena nave, foi postar-se bem em frente
ao altar, justamente onde estava o presidente, ladeado pelas altas autoridades
do estado.
Era um velho cachorro amarelo, vira-lata, com
uma ferida no dorso. Cachorro de rua mesmo. Sem dono, perdido. Esse cachorro
ficou imóvel, ao lado do meu protetor, Juscelino. Ergueu a cabeça, observando o
ambiente. Em seguida, extasiado pela música do órgão, assentou-se no chão, com
a cabeça sobre as patas dianteiras. Deve ter achado tudo muito bonito e bem
organizado. Assim ficou quieto durante algum tempo. Mesmo nessa posição,
percebia-se que tinha os olhos postos no seu irmão de raça, que se destacava na
parede, ao lado da imagem de São Francisco de Assis. Eu fiquei pasma. Como isso
poderia acontecer nesse momento tão solene? Quebrar o brilho da minha
consagração? Salve-me, São Francisco!!! Nessa hora, pedi proteção ao meu
patrono.
Tudo isso constituiu uma cena patética,
emocionante. O pobre animal, perdido no meio da multidão, observava com
interesse a figura do seu semelhante, pintado por Portinari.
Painel do altar mor - pintado por Portinari
Ele, esse cachorro velho e amarelo se
identificava com o outro, da mesma cor, da mesma conformação física, dos mesmos
olhos grandes e compassivos. O cão do painel não era diferente dos demais cães.
Dava a impressão de que flutuava, já que seus pés não tocavam o chão. O cachorro
visitante assistia a parte da cerimônia religiosa e, quando achou melhor, foi
saindo silenciosamente, como tinha entrado. Nenhum ruído. O silêncio era total.
Como um nobre, ele foi se afastando, até a porta de saída.
O ex-prefeito de Belo Horizonte sentiu a cena
e reviveu momentos de dificuldades na sua vida administrativa. “Pobre igrejinha!”
Teria ele dito. “Meu pensamento sempre esteve aqui.” Por que isso teria
acontecido? Por que esse cachorro foi postar-se logo ao lado do Presidente?
Fiquei imaginando como os olhos de Juscelino
foram buscar tantas lágrimas ao recordar o primeiro contato com o arcebispo.
Agora, havia uma mensagem misteriosa, presenciada por todos. Juscelino, muito
emocionado, agradeceu a São Francisco de Assis. Lembrou-se, ainda, do templo
desse mesmo santo em Diamantina, onde seu pai foi enterrado. Memórias que
voltaram à sua mente. Mensagem de carinho, de conforto e de perdão.
Eu, no meu canto, gritava de alegria porque
estava agora, e para sempre, a serviço das almas de todos os que me procurarem.
Depois de 17 anos, chegou o meu dia festivo.
Lembro-me de que meu patrono sempre foi um
pobretão, protetor também dos animais e lembro-me ainda de que esse velho
cachorro vira-lata também devia ser devoto de São Francisco. Ele teria vindo
como emissário de agradecimento e de amizade, para pedir proteção. Ou deve ter
vindo em missão!!!
não conhecia esta história da igrejinha da pampulha. muito interessante
ResponderExcluirgostei muito e a historia é muito interessante
ResponderExcluirEsta igreja é linda diferente um apena que vândalos sempre prejudicam as obras de artes
ResponderExcluirFui este mês na Pampulha conhecer as obras, infelizmente a igreja esta fechada pra reforma. Mas o espaço esta muito sujo e desleixado, não merece o título de patrimônio. bonita somente em fotos.
ResponderExcluirSaí de Maceió com destino a Belo Horizonte, conhecer esta igreja, infelizmente estava fechada para reforma. A área no entorno muito mal cuidada, jardins secos, praças sujas. A Lagoa da Pampulha extremamente poluída, exalando mal cheiro. Uma área nobre da cidade, patrimônio da humanidade, mal cuidada pelo poder publico, e não respeitado pelos usuários.
ResponderExcluirsuja nunca esteve. estava em reforma. Hoje faz qualquer turista, mesmo os de pouca sensibilidade se deslumbrarem.
ExcluirEsta obra é um MARCO. O Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte, ganhou da Organização das Nações Unidas em 2016 o título de Patrimônio Cultural. Deteriorada pela má administração, atletas de fim de semana e transeuntes.
ResponderExcluircongratulações pelo texto, diferente, não sabia desse acontecimento. Sei que algum bispo não quis inaugurar porque achou um escândalo a construção da igreja no estilo modernista.
ResponderExcluirnao existe similar. Produto da década de 40, cada dia se renova.Entretanto, cada pessoa vê com os seus próprios olhos e suas mentes.
ExcluirLEGAL, GOSTEI
ResponderExcluirRogério, obrigada. Voltei aos tempos da Pampulha de Juscelino. A entrada do cachorro durante a missa, completa o quadro franciscano.
ResponderExcluir