quarta-feira, 24 de outubro de 2012

MARÍLIA DE DIRCEU - ENTREVISTA VIRTUAL


No imaginário do povo brasileiro reina a musa, a bela Marília de Dirceu, Maria Doroteia Joaquina de Seixas, em toda a sua plenitude de inspiração poética.

Apresentação
Marília de Dirceu tornou-se o mito amoroso literário do Brasil, pelo seu ardente e frustrado amor, dedicado ao poeta e jurista português, Ouvidor da Corte, Tomás Antônio Gonzaga, que a retratou nas suas liras, imortalizando-a, como o fez Petrarca a Laura e Dante Alighieri a Beatriz. Três musas imortais!  
Ele, Tomás Antônio Gonzaga, era um quarentão e ela uma adolescente! E o amor fluía no bucolismo das montanhas mineiras de ovelhas brancas, em saudável pastoreio, na brisa de fontes impassíveis.
Mas nem tudo são flores! O vento da desgraça ululante passa, interrompendo as juras de amor eterno e arrastando os sentimentos mais puros para os caminhos do infortúnio, do desespero, da separação repentina.  O noivo foi envolvido no movimento libertário da Inconfidência Mineira, sendo logo preso, algemado e conduzido acorrentado para o Rio de Janeiro, apesar de ser amigo do então governador da capitania. Visconde de Barbacena. Preso incomunicável, oito dias antes das bodas! Gonzaga permaneceu três anos na prisão e foi condenado ao degredo na África para sempre.
Nunca mais mandou um versinho sequer para a sua Marília tão amada, que viveu o infortúnio amoroso na mesma terra que a viu nascer e morrer, já octogenária, esperando ainda, pelo eterno noivado, qual Penélope esperando Ulisses!   

Nesta noite silenciosa e triste de Ouro Preto, invocamos a presença da bela Marília para uma entrevista virtual. Nada poderia ser mais pungente para ela que reviver os belos dias de adolescente, mas, mesmo assim, teve tranquilidade suficiente para reafirmar o inesquecível amor ao poeta Gonzaga.
Estas foram as suas palavras.    

Entrevistador - Saúdo e reverencio a bela Marilia de Dirceu, musa inspiradora do grande poeta da Inconfidência Mineira, Tomás Antônio Gonzaga! Podemos conversar um pouco?
Marília de Dirceu - No meu recolhimento espontâneo, sinto-me tímida e constrangida, tanto agora como sempre fui. Peço me desculpar por essas falhas, justificadas pela minha reclusão e pelo meu sofrimento tão duradouro.
Entrevistador - Compreendo a sua reclusão. Compreendo e imagino o seu sofrimento. Entretanto, na nossa conversa serena e simples, não me proponho a ferir mais seu coração tão angustiado, com assuntos do passado longínquo.
Marília de Dirceu - Agradeço a consideração. Mesmo assim, nem o tempo pode apagar totalmente tantas recordações de ardente amor, de desesperado amor, de amor impossível.
E - Realmente!  Nem você, nem seu noivo, o poeta, Gonzaga, nem o povo mineiro ou brasileiro puderam deixar de acompanhar e de sentir o desenlace de seu romance, vitimado pela tragédia da Inconfidência Mineira. Por isso mesmo, você é considerada como o primeiro mito amoroso literário do Brasil.
MD - Bem sei. Minha vida infortunada começou cedo. Perdi a minha mãe quando era uma menina ainda. Ela morreu jovem. Tínhamos o mesmo nome, Maria Doroteia Joaquina de Seixas. Eu e meus quatro irmãos passamos a residir com meu avô, tenente-general Bernardo da Silva Ferrão. Depois, com meu tio muito amado, de alta patente militar, João Carlos Xavier da Silva Ferrão e com minhas tias.
E - E o seu pai?
MD - Meu pai, Baltazar Mayrink, amargurado, fechou-se nas suas fazendas de Itaverava.
E - Uma infância sofrida e atribulada!
MD - Sim! Apesar dessas primeiras infelicidades, o meu novo lar foi sempre cheio de carinho e compreensões. A educação esmerada dos meus familiares maternos moldou o meu caráter. Essa e a maior riqueza que pude possuir.
E - Frequentou escolas?
MD - Só participei de cursos domésticos ou maternais em Vila Rica, para alfabetização, cálculos elementares e instrução cristã. Até meados do século XVIII, não havia, na capitania de Minas nenhuma escola de qualquer nível, para moças. Eram proibidas por ordem da Coroa Portuguesa. Só o seminário. O analfabetismo era generalizado. Em 1750 foi fundado o Seminário Nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana, pelas diligências do frei Manuel da Cruz. Mais tarde foram implantados os colégios jesuítas.
E - Mas possui outras riquezas, além de sua doce beleza física, do seu caráter, e de sua sensibilidade afetiva: o amor enlouquecido despertado no jurista e poeta Tomás Antônio Gonzaga.
MD - São riquezas que se esvaíram muito cedo. Encontrei o meu noivo, pela primeira vez, quando eu era adolescente ainda. Ele era Ouvidor da Coroa em Vila Rica. Minha família fazia objeções a esse namoro, principalmente pela diferença de idade entre nós. Ele já tinha quarenta anos.
E - Mas o poeta era um homem disputado na capitania, pela sua posição social, pelo cargo que exercia e pela sua elegância.
MD - Ele era realmente uma pessoa de rara sensibilidade, educado e graduado em Leis, pela Universidade de Coimbra em Portugal. Era português, nascido na cidade do Porto, em 1744, filho de pai brasileiro. Era um hábil poeta. Encantou-se por mim e passamos a ter relacionamento afetivo e literário, por quase quatro anos.
E – Afetivo e literário?
MD - Ele escrevia liras constantemente, sempre pensando em mim, em meu nome, dedicadas a uma suposta Marília. Um de seus versos: “À noite te escrevia da cabana os versos que havia feito. Mal os dava, os guardava no casto e branco seio”. Ou então: “quando apareces, na madrugada, mal embrulhada, sem fita nem flores... ah, então brilha, a natureza então se mostra tua beleza inda em flor”. “Minha Marília, se tens a beleza da natureza é um favor, mas se aos vindouros teu nome passa é só por graça do deus do amor, que terno inflama a mente e o peito do teu pastor”.  Ele escolheu o pseudônimo de Dirceu para ele. Assim, agregou o meu nome poético ao dele, para compor Marília de Dirceu, como forma literária em todas as suas liras.
E - Ele mudou seu nome para Marília?
MD - Sim. Era uma norma do movimento literário da época, o Arcadismo. O termo tem origem grega. Uma região da Grécia. Designava uma sociedade literária típica da última fase do Classicismo. Os membros da Arcádia adotavam pseudônimos poéticos pastoris, em referência à vida simples dos pastores, em comunhão constante com a natureza.
E - Que época?
MD - Esse movimento literário teve início em 1768, com a publicação de OBRAS POÉTICAS, de Cláudio Manuel da Costa, em Vila Rica. O seu término está considerado como ocorrido com o advento da obra de Gonçalves de Magalhães, SUSPIROS POÉTICOS E SAUDADES, em 1836. Não há registros oficiais desse movimento, mas Ouro Preto era a cidade mais importante do Brasil, naquela época.
E - E as liras de Tomás Antônio Gonzaga, seu noivo, todas dedicadas a você, Marília, já dão o primeiro passo para o Romantismo. Não é verdade? Falam da supervalorização do amor e na idealização da mulher, como mito. Amor constante e obstinado.
MD - Eu não poderia interpretar essas características estéticas de movimentos literários, porque vivia um romance envolvente na época.
E - Esse romance envolvente caracteriza um pré-romantismo, com características transitórias. Mas isso não tem importância senão para os especialistas. Então, como namoravam?
MD - Os encontros eram raros. Somente nas missas, nas festas religiosas, solenidades sociais. Nada mais. Ah, sim! Conversávamos pelas nossas janelas, em gestos, sorrisos, beijos distantes. Tínhamos os lenços brancos em código. Era o nosso romance, a continuidade do amor de minha primavera misteriosa. Era feliz! Era amada! Era louvada!
E - Conversavam com os lenços brancos?
MD - Pode parecer estranho nos dias de hoje, com outras percepções e formas de amar. Mas nossos lenços traduziam nossos sentimentos. Nossas mensagens, interpretadas com fidelidade. Quando encontrávamos, fazíamos outros propósitos amorosos.  
E -  Havia, pois, muito derretimento amoroso, amor-adoração, “melosidade” nas liras, erotismo dengoso e açucarado do bucolismo do poeta?
MD - É verdade. Suas liras eram unânimes em confirmar tudo isso. Sua obra contém 79 liras, 16 sonetos 2 odes e 2 poemas especiais. A primeira fase foi escrita em Vila Rica, com 33 liras. A segunda foi escrita na prisão, com 38. A terceira são 8 liras e mais os sonetos e odes, também escritas na prisão. Não escreveu no degredo.
E - O poeta era um noivo apaixonado?
MD - Ele era decididamente uma pessoa que desejava o lar, a vida tranquila e bucólica. Escreveu sobre isso muitas vezes. Assim: “Lerás em alta voz a imagem bela! Eu vendo que lhe dás o justo apreço, gostoso tornarei a ler de novo o cansado processo.”
E - E por que não se casaram?
MD - Tudo preparado para o nosso casamento. Nada podia faltar, inclusive o meu vestido de noiva, que ele mesmo ajudou a bordar. Ele era paciente, hábil.
E - E ele também bordava?
MD - Sim. Os nossos lenços eram bordados por ele, também.
E - Sim! Mas por que não se casaram?
MD - Ele foi preso, implicado no movimento libertário da Inconfidência Mineira, oito dias antes do dia marcado para as bodas. Foi preso, encarcerado, incomunicável e transferido para o Rio de Janeiro, acorrentado, apesar de ser amigo do governador Visconde de Barbacena.  Ficaram para mim as suas doces palavras: “Eu tenho um coração maior que o mundo! Tu, formosa Marília, bem o sabes. Um coração e basta onde tu mesma cabes!”
E - E nunca mais o viu?
MD - Nunca mais o vi. O meu coração partido e as minhas lágrimas foram insuficientes.
E - E os seus familiares eram pessoas de influência política na capitania. Podiam interceder por ele.
MD - Meus tios eram militares a serviço do governador e da Coroa. Não poderiam interceder por um traidor, por um conspirador. Os bens de todos os inconfidentes foram imediatamente confiscados. Quem se envolvesse era cúmplice. Tudo um desastre completo. A prisão inopinada de todos os conjurados, com o confisco imediato dos seus bens. A devassa com todos os seus rigores! A morte horrível do inconfidente Cláudio Manuel da Costa, ocorrida na prisão! A condução dos presos para o Rio de Janeiro, algemados e acorrentados. As imundas prisões! A execução espetaculosa de Tiradentes, alguns anos depois. O esquartejamento em praça pública! Um alto poste erguido com a cabeça de Tiradentes em praça pública de Vila Rica! O arrasamento de sua casa, para que nada nela jamais pudesse germinar! O sadismo exacerbado, as calúnias, as perseguições políticas, as denúncias oferecidas para granjear a simpatia do governador! Tudo um desastre.  E o meu amor seria a menor parte dessas desgraças todas! Minha vida também corria perigo. A ordem geral era mesmo o recolhimento e o silêncio.
E - E ele? E Gonzaga?
MD - Ele sofreu as mesmas angústias no cárcere! A saudade, as dúvidas, as queixas, as lembranças do tempo passado na bucólica terra fértil, de ovelhas brancas, do puro leite e da fina lã. Suas esperanças ilusórias. Os interrogatórios. A vil traição. Disse, pois: “Não são as honras que perco quem motiva a minha dor; mas sim, ver que o meu amor este fim havia de ter. Ausente de ti, Marília, que farei? Irei morrer?”
E - Restou um fio de esperança para a triste noiva?
MD - Nenhuma esperança! Meus familiares previam o desfecho da tragédia e não escondiam nada de mim. Acompanhei, passo a passo, todo o desenrolar dos acontecimentos. Tive notícia de que ele seria condenado à forca. Como eu poderia ter um pensamento de alguma felicidade a encontrar nesta vida? Depois, houve a comutação da pena. Foi condenado ao degredo perpétuo na África. Eu era realmente, nesse momento, uma noiva desesperançada.
E - Lembrava-se das conversas com os lenços brancos, das janelas?
MD - Guardei os meus lenços brancos, lavados e engomados, numa pequena caixa toda bordada de borboletas azuis. Deixei-a perto da minha cabeceira e ao me deitar, abria cada um deles, absorvia o seu perfume e, suavemente surgia à minha frente a imagem dele, com o seu sorriso de sempre, trazendo uma nova lira dedicada a Marília de Dirceu. Dobrava novamente cada lenço, conversando com eles. Colocava-os de novo na caixa bordada. Fechava-a cuidadosamente, e sentia que as lágrimas desciam lentamente. Nunca chorei. Era sempre um pranto silencioso, abafado. Meu mundo passou a ser isso. Suas palavras, ainda: “Leu-me enfim a sentença pela desgraça formada. Adeus, Marília adorada, vil desterro vou sofrer. Ausente de ti, Marília, que farei? Irei sofrer!”
E - Era uma paixão muito forte! Compreendo os seus momentos de desespero e de impossibilidade de reação. Era uma paixão de uma adolescente! Era uma paixão arrasadora!
MD - No princípio do nosso namoro, eu fiquei apenas enlevada com a sedução de uma pessoa tão importante no cenário jurídico e político da capitania.  Depois, fui me envolvendo. Finalmente, antes do desenlace, o amor me trouxe à realidade. Senti então que estava mesmo dentro de um momento de total felicidade, encontrando um homem a quem poderia entregar a minha vida por inteiro, que poderia desfalecer em seus braços. Seria amada e desejada por toda uma existência. Infelizmente, as portas do destino se abriram para outros itinerários. Não tive o direito de ser feliz.
E - A felicidade passou à sua porta apenas uma vez?
MD - As marcas de uma paixão não se desfazem com um simples estalar de dedos. Um sentimento guardado silenciosamente é mais difícil de ser calcado para o fundo do inconsciente.  Por mais amores que pudesse ter tido nesta vida, nenhum seria o amargurado primeiro amor.
E - A senhora teve uma vida de reclusão, mas foi uma vida confortável e privilegiada na sociedade da época!
MD - Vivi confortavelmente meus oitenta e seis anos como se fosse uma menina de dezessete, pois nasci em 4 de outubro do ano de 1767. Hoje, ainda brinco de bonecas! Guardo pequenos bordados, lenços brancos. Tudo por compulsão. Um pedaço de pano branco? Posso bordá-lo com uns peixinhos do mar. Para quê? Nem eu mesma sei.  Será que meus últimos suspiros foram pensando nele? Talvez ele tivesse outras formas, outros espectros para avivar a minha memória. Nem posso afirmar que o tenha visto nos meus momentos finais, ao se apagarem as minhas luzes.
E - E no degredo, em Moçambique? Nem mais uma palavra do sempre noivo e poeta Gonzaga?
MD - Nenhuma palavra me chegou aos ouvidos. Nenhuma mensagem de alegria ou de dor. Ele deve ter tido uma vida afortunada em Moçambique!
E - Quando na prisão, consta que ele propôs que a senhora o acompanhasse para a África, no degredo! Um casamento?
MD - Uma proposta que nunca chegou até mim. Será que eu mesma teria condições de me decidir a ir para a África? Será que o convite não foi apenas uma formalidade poética? Nossos caminhos se desviaram infelizmente. Que me resta? Fiz testamento de próprio punho, para impedir outras destinações para meus bens. Ainda vivi alguns anos depois. Finalmente, em 1853, me despedi da minha terra, do meu lar, do meu eterno noivado.
E - Gonzaga morreu em Moçambique possivelmente em 1810. Consta que ele tinha se casado com uma mulata analfabeta, filha de um rico comerciante português, Na época desse casamento, ele tinha 49 anos de idade e ela apenas 19. Imagino que possam ter tido uma vida pelo menos abastada.
MD - São informações vãs e frágeis para poder destruir o império de recordações, amargas e doces, de minha juventude. Mas, na vida não há passagem de retorno. Em vão, penso reviver o amor ardente. Impossível! Nem os dedos das minhas mãos me obedecem para fazer uma simples carícia, naquele rosto lindo, nas suaves expressões faciais de ternura infinda. Como posso dizer adeus à vida, sem ter realizado um simples sonho de adolescente? Minhas mãos estão trêmulas e o ar que respiro não aplaca os meus suspiros. Infelizmente, tenho que dizer adeus, assim mesmo. Digo, finalmente, para os jovens amantes, que aproveitem a vida como se os dias que passam fossem os últimos de sua vida. Cada dia deve ser vivido como se fosse realmente o último. Depois disso, vem a desesperança. Inevitavelmente! Essa é a grande trapaça desta vida!  Desculpe, tenho que sair! Não estou suportando a mágoa dessas lembranças.
E - Perdão! Antes de nossas despedidas, gostaria de perguntar se a senhora teve conhecimento de tantos poetas que escreveram sobre a doce Marília?
MD - Sei, sim. Tantos e tantos. Outros tantos ainda virão. Recolho todos esses fragmentos de inspiração poética e guardo-os no meu casto e branco seio.
E - Lembra-se do poeta Bueno de Rivera?
MD - Sim! Impossível esquecê-lo! A minha emoção está sufocada. Tudo é passado! Passei a minha vida, quase toda, procurando o aroma das brisas nos campos floridos, cheios de ovelhas brancas.
E - Há dois séculos a mão paciente borda o inacabado vestido de noiva! Borda com enlevo rosas no ombro, borda açucenas vivas no colo. Borda um colar de anjos na gola. Borda cirandas na barra da saia. Borda coroas de abelhas nos punhos. Borda na manga um peixe voando. Borda uma ave de ouro no umbigo. Borda uma lira no bico do seio. Borda nas costas um campo de trigo.
Os dias se enrolam como carretéis. Se desenrolam de novo, de novo se enrolam, A agulha de prata segue no tempo bordando, bordando na casa da amada, na ponte em suspiros, no vil calabouço, nas terras da África, na morte no exílio.
No silêncio mofado do museu histórico, as falanges secas prosseguem bordando o longo vestido do eterno noivado.
MD - Volto meus olhos ao poeta mineiro em sublime agradecimento pela minha memória, dois séculos passados! Meu longo vestido do eterno noivado!
E - E Cecília Meireles:
Este é o lenço de Marília, pelas suas mãos bordado, nem a ouro nem a prata, somente a ponto cruzado. Este é o lenço de Marília para o amado. Em cada ponta, um raminho, preso num laço encarnado, no meio, um cesto de flores, por dois pombos transportado. Não flores de amor-perfeito, mas de malogrado!
MD - Um belo poema que não tive oportunidade de conhecer em vida. Agora, sinto-me ainda constrangida, tímida e cansada de tudo.
E - Não pretendemos estender o seu sofrimento com tantas recordações. Agradecemos as suas sentidas e amarguradas palavras. Os nossos agradecimentos. Entretanto, neste final, todos ficam esperando as suas despedidas, Marília, sempre bela e sempre amada!
Marília de Dirceu - Meu olhar vagueia pelas montanhas abruptas das cercanias e pelo vasto campo onde pastoreiam as minhas ovelhas, ainda hoje.  Adeus campos floridos! Adeus amores perdidos nas brumas do tempo! Adeus terra que me viu nascer e morrer! Parti desta vida, mas pairo abençoando os corações enamorados, por onde quer que se encontrem. Adeus!
Entrevistador - Esta é a musa brasileira!


TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Tomás Antônio Gonzaga, ouvidor da Coroa Portuguesa em Ouro Preto, nasceu na cidade do Porto – Portugal, em 1744. Era graduado em Direito pela Universidade de Coimbra. Vindo para Ouro Preto, enamorou-se de Maria Doroteia Joaquina de Seixas, escrevendo todas as suas liras em seu louvor, transformada em Marília de Dirceu. Com ela iria se casar, mas foi preso, envolvido no movimento libertário da Inconfidência Mineira, oito dias antes das bodas. Foi levado acorrentado pra o Rio de Janeiro, onde ficou preso por três anos e depois do julgamento, foi deportado para a África, onde ficou até a sua morte, sem nunca mais ter visto a sua amada noiva.
Suas liras são divididas em três partes: a primeira, escrita em Ouro Preto. A segunda e a terceira durante a prisão. Aqui está uma das suas últimas liras.

 

A UMA DESPEDIDA

PARTE III

Chegou-se o dia mais triste
Que o dia da morte feia;
Caí do trono, Dircéia,
Do trono dos braços teus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Ímpio fado, que não pôde
Os doces laços quebrar-me
Por vingança quer levar-me
Distante dos olhos teus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Parto, enfim e vou sem ver-te,
Que neste fatal instante
Há de ser o teu semblante
Mui funesto aos olhos meus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

E crês, Dircéia, que devem
Ver meus olhos penduradas
Tristes lágrimas salgadas
Correrem dos olhos teus?
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

De teus olhos engraçados,
Que puderam, piedosos,
De tristes em venturosos
Converter os dias meus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Desses teus olhos divinos,
Que, ternos e sossegados,
Enchem de flores os prados
Enchem de luzes os céus?
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Desses teus olhos, enfim,
Que domam tigres valentes,
Que nem rígidas serpentes
Resistem aos tiros seus?
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

De maneira que seriam
Em não ver-te criminosos,
Enquanto foram ditosos
Agora seriam réus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Parto, enfim, Dircéia bela,
Rasgando os ares cinzentos;
Virão as asas dos ventos
Buscar-te os suspiros meus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Talvez? Dircéia adorada,
Que os duros fados me neguem
A glória de que eles cheguem
Aos ternos ouvidos teus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Mas, se ditosos chegarem,
Pois os solto a teu respeito,
dá-lhes abrigo no peito,
junta-os c´os suspiros teus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

E quando tornar a ver-te
Ajuntando rosto a rosto,
Entre os que dermos de gosto,
Restitui-me então os meus.
Ah! Não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!


BIBLIOGRAFIA 
GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu.RJ:
Ediouro, RJ, 1997
SANCHEZ, Alexandre. Maria Dorothea, a musa revelada. Belo Horizonte: Gráfica e Editora Lima Ltda, 2006.
VASCONCELOS,  Salomão. A casa de Marília.Belo Horizonte: revista do IHGMG, n.VII  pág. 15
MORICONI, Ítalo. Os cem melhores poemas do século. Rio de Janeiro:  ed. Objetiva, 2001
CARNEIRO,  David. Marília um novo julgamento da inspiradora de Gonzaga. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1952
JÚNIOR, Augusto de Lima. O amor infeliz de Marília de Dirceu. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1998

domingo, 14 de outubro de 2012

DEPOIMENTO DE TIRADENTES!


TEATRO

Autor: Rogério de Alvarenga
Revisão: Omar Fürst

INTRODUÇÃO:

Apresentação do Hino da Independência (Letra de Evaristo Ferreira da Veiga e música de dom Pedro I)

Já podeis da pátria filhos/ ver contente a mãe gentil/ já raiou a liberdade/ no horizonte do Brasil/ já raiou a liberdade/ já raiou a liberdade/ no horizonte do Brasil.
Brava gente brasileira/ longe vá temor servil/ ou ficar a pátria livre/ ou morrer pelo Brasil/ ou ficar a pátria livre/ ou morrer pelo Brasil.
Os grilhões que nos forjava/ da perfídia astuto ardil/ houver mão mais poderosa/ zombou deles o Brasil/ houver mão mais poderosa/ houver mão mais poderosa/  zombou deles o Brasil.
Brava gente brasileira/ longe vá temor servil/ ou ficar a pátria livre/ ou morrer pelo Brasil/ ou ficar a pátria livre/ ou morrer pelo Brasil
Não temais ímpias falanges/ que apresentem face hostil/ vossos peitos, vossos braços/ são muralhas do Brasil/ vossos peitos, vossos braços/ vossos peitos, vossos braços/ são muralhas do Brasil.
Brava gente brasileira...
Parabéns, oh brasileiros!/ já, com garbo varonil/ do universo entre as nações/ resplandece a do Brasil/ do universo entre as nações/ do universo entre as nações/ resplandece a do Brasil.
Brava gente brasileira...  

PRIMEIRO MOMENTO


(Tiradentes entra com farda de alferes) – Amigos meus destas plagas! Meu profundo respeito e minha reverência. Vim para que possamos nos conhecer melhor. Não me perguntem de onde eu venho! Os fragmentos do meu corpo foram afixados nos caminhos do ouro e desapareceram. Não tive túmulo.

Como vocês sabem, sou Joaquim José da Silva Xavier, alferes da Cavalaria Paga de Vila Rica. Sou um revolucionário! Eu me envolvi, junto a corajosos companheiros da capitania de Minas Gerais, em Vila Rica do Ouro Preto, na preparação de um levante pela conquista da liberdade do nosso país. Uma conspiração, uma conjuração, com objetivo e planos estratégicos confidencialmente traçados. Uma conjuração!

Eu, na verdade, era o mais humilde do grupo, um simples alferes. Era o mais humilde, mas era, também, o mais empolgado com a ideia de liberdade para a nossa pátria. Gritei aos quatro ventos, abracei de corpo e alma essa causa. Ela me envolveu por completo e, por pouco, a nossa história teria sido convertida em glórias. Hoje, tudo são cinzas sopradas pela memória de alguns brasileiros. Alguns riem dessa utopia, desse sonho. Quem não sonha não planeja, não age, não acontece. Riem porque fui enforcado e legalmente julgado. Duvidam?

Fui preso no Rio de Janeiro no dia 10 de maio de 1789, sem saber por quê? Estava licenciado de minhas funções militares para a execução de um projeto de captação e distribuição de água. Eu tinha visão empresarial e habilidade para projetos de construção. Eu não era um inútil despreparado. Sempre me despontei, aprendendo novas técnicas e novos métodos de trabalho. Tudo em favor do povo. Via em primeiro lugar o sofrimento do povo, por isso também me dediquei à medicina com plantas e ervas, junto com o tratamento de dentes. Daí, o meu cognome, Tiradentes. A anestesia foi um grande descobrimento para a humanidade. Hoje, poucas pessoas sabem o que seja a dor de dentes. No meu tempo, era sofrimento para todos. Sem medicamentos e sem pessoas que pudessem prestar assistência. Fiquei conhecido e conhecia centenas de pessoas a quem cumprimentava e a quem tinha o maior respeito. Até me admiravam e me seguiam. Ou vocês estão imaginando que eu não tinha um séquito de companheiros que estava disposto a pegar em armas a meu lado? E deu no que deu!

Como disse, fui preso e conduzido para uma prisão escura, incomunicável, na fortaleza da ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. Três anos incomunicável, nessa prisão fétida, cheia de piolho e percevejos. Acorrentado! Algumas acareações e depoimentos. Dessa prisão nunca mais saí. Saí para o enforcamento em praça pública, como se fosse um palhaço revolucionário, divertindo uma plateia de cariocas temerosos. Não foi só isso. Respeitei as leis e as decisões dos preclaros juízes e perdoei o meu carrasco de nome Capitania. No momento do enforcamento, frente a frente com esses juízes fiscalizadores do evento, olho a olho com o meu carrasco, eu me ajoelhei e pedi licença para beijar os seus pés. O meu ódio se transformou em humilde compaixão pelos que não sabiam o que estavam fazendo. O carrasco Capitania era apenas um serviçal da rainha louca, dona Maria I. Louca enfurecida, carola, com seus duzentos frades em orações contínuas e em tempo integral. E seus juízes subalternos, juízes aderentes, fingidos, submissos, estavam decididos a condenar.

Pois foi assim. O carrasco Capitania portava uniforme de gala para um acontecimento público em grande comemoração. A morte de um revolucionário. Perdoei a todos. Digo aqui, agora, com a pureza e a lealdade de todos os meus sentimentos. Perdoei. Perdoei porque já estava cansado de toda essa farsa, estressado com tantos algozes refestelados, como abutres - sim, como abutres, aves de rapina.

Pode parecer que eu não tenha perdoado. Eu estava aflito para que essa comédia terminasse. Eu desejava o fim. E o fim foi cruel, como poucas vezes se viu igual nesse mundo. Fui enforcado e esquartejado a machado, em praça pública. Minhas partes – cinco partes do meu corpo se despregaram de mim, como partes preciosas para serem afixadas nas estradas do ouro. Meu coração e minhas vísceras serviram de alimento para os cães de dona Maria primeira.
Por isso eu disse antes que não sabia de onde estava vindo, porque as partes do meu corpo, como sementes da liberdade, foram plantadas em todo o percurso do caminho novo. Cada uma delas fala por mim, para toda a eternidade, como um grito de liberdade rugido por um infeliz revolucionário das Minas Gerais.    
           
Peço desculpas se hoje falo dessa maneira. Não tenho coração para sentir. Onde estaria meu coração? Dez vidas eu daria, se tivesse, pela liberdade do meu país! Ouso repetir isso perante o meu povo de Minas Gerais!
(Extenuado, senta-se. Servem-se bebidas. Troca de roupa. Alguém aparece para ajudá-lo a tirar algumas peças de sua farda, deixando-o como cidadão, homem do povo.)

SEGUNDO MOMENTO


Sou filho de pai português e de  mãe paulista. Fiquei órfão de pai aos 9 anos e de mãe, aos 11. Fiquei só no mundo, como estou aqui, e como sempre estive. Meus irmãos cuidaram de mim enquanto puderam. Nasci na fazenda do Pombal, em Ritápolis, perto de São João del-Rei. Sou da nação de Minas Gerais.

Em Vila Rica, todos tinham uma bateia debaixo do braço. Eu nunca fui minerador. Tenho algumas economias porque já trabalhei como mascate, dentista e, depois me tornei militar, fiel servidor da soberana rainha de Portugal e enfrentei as mais ousadas tarefas para garantir a segurança, a nobreza e a divindade de reis e rainhas.

Ah! Divindade de reis! Como diziam. Todos nascemos nus e a natureza não distingue um príncipe de um mendigo. Somos iguais perante a natureza. Eu não nasci alferes, mas sou militar de carreira.

Ah! O poder divino dos reis! O povo no poder! A França e a Nova Inglaterra estão em crise de poder. Os reis estão na terra como seres comuns.

Nessa época, os reis estão apavorados com as ideias revolucionárias, atingindo as raias da loucura. Vejam Maria Antonieta e Luís XVI tentando sobreviver ao clamor das massas populares famintas e desesperadas. Liberdade, igualdade e fraternidade! Milhares de anos de opressão dos reis sobre o povo ignorante e submisso. O povo no paraíso. Esse dia há de chegar. Impossível? Milhares e milhares de anos de opressão. Escravos sobreviveram ou morreram, por milênios, sob o poder legalizado e impiedoso dos nobres e dos reis. A grande transformação com o povo no poder. O povo finalmente tem direito à sua parte no paraíso. Esse dia há de chegar!

Os tronos são obstáculos odientos e usurpadores da plena felicidade do povo. E têm que ser combatidos. Nunca deixei de falar o que penso e o que guardo dentro do meu peito. Meu sonho é ver este país tornar-se uma república livre e independente.

Formamos um grupo composto de juristas, empresários, religiosos, militares, intelectuais – poetas, para uma ação revolucionária. Poetas? Sim, poetas têm a coragem e a ousadia de expressar seus sentimentos mais íntimos, seu ideário de liberdade a qualquer preço.

Os fidalgos estão em baixa. Para eles, o povo fede!

Os Estados Unidos da América conseguiram o triunfo completo pela independência em 1776. Nosso dia chegará! Pareço louco? Pareço revoltado? Impossível deixar de transparecer a cor do sangue que corre nas minhas veias.
Veja o que acontece em Vila Rica: chega um governador e, em três anos vai embora com as cargas cheias de ouro. Ele e seus serviçais. Entra logo um novo governador com a mesma fome, com o mesmo apetite. Brota ouro para todos.

Vila Rica pariu mais de mil toneladas de ouro. Um milhão de quilos. O que ficou? O que restou? Para onde foi?

Sou um homem de brio, de vergonha e de força, aos 45 anos de idade. Como posso assistir a tudo isso? Como posso me calar diante de tanta violência, todas legais?
Pensam que não sinto a imagem de Felipe dos Santos, em 1720, esquartejado, amarrado em quatro cavalos?

Sabem? O destino dos idealistas é a morte sem túmulo.

A liberdade não tem preço e nem conhece limites. Todos vivem aqui em cárcere aberto. Não temo os truculentos. Falo por mim e por vocês, mentes brilhantes de gerações futuras.

Tantos jovens bacharéis chegaram de Coimbra. Ideias novas, revolucionárias na turbulência dos movimentos sociais. Povo rico e participativo, fábricas abertas. Agora, tudo proibição.

Pensam que sou louco? Louco por imaginar a liberdade do meu povo? Para os medrosos todas as portas estão fechadas.

Sou louco. Sinto a exploração selvagem do ouro em Vila Rica e a opressão de todas as partes. Proibida a educação e todo processo produtivo. Uma voz tem que se levantar dessa multidão de cordeiros diante dos lobos famintos. Cabeça baixa, chapéu na mão, pobres e miseráveis. E a rainha distribuindo ouro aos países vizinhos. Que a leve o diabo! Falo isso nas pensões, nos ranchos, nas reuniões secretas ou na confidência entre amigos. Claro! Não posso falar em praça pública um plano confidencial.  Conheço todos em Vila Rica e todos me aclamam.

Louco? Louco por liberdade! Os bárbaros invasores não poupam nada para nos fazer submissos.

Queremos uma república livre e independente, uma bandeira, uma universidade e a libertação dos escravos.

Temos que dar o primeiro passo. Cumpre aos seguidores dar o segundo. Sem este primeiro passo não haverá o segundo. E não haverá o último.    

TERCEIRO MOMENTO

(Alguém ajuda-o a trocar de roupa, para vestir o camisolão branco – dando um tempo de descanso para beber água, ante de recomeçar)

Como falei, tinha sido preso no Rio de Janeiro. Meus companheiros foram sendo presos um a um, onde estivessem. Seus bens eram confiscados, as famílias ficavam na miséria. Cláudio Manuel da Costa foi morto na prisão, ou suicidou-se. Duas devassas foram abertas, uma no Rio, pelo Vice-Rei, Luís de Vasconcelos e Souza e outra em Vila Rica, pelo Visconde de Barbacena. As duas digladiavam procurando envolver o maior número de culpados. Nunca houve culpados. Apenas os representantes da Coroa portuguesa queriam mostrar fidelidade e produção. O povo assistia a tudo pelas gretas das janelas e se escondia e só aparecia para delatar, como forma de proteção. Nem uma palavra de contestação. Silêncio sobre as brumas.

As devassas se prolongaram por três anos. Os réus estavam aprisionados. Estávamos presos no mesmo local, mas incomunicáveis. Também, Joaquim Silvério dos Reis, que era nosso companheiro e amigo, ali mesmo se encontrava, como tive oportunidade de ficar sabendo, muito depois.

Quatro acareações e muitos interrogatórios. Um dia, tive uma acareação com Joaquim Silvério dos Reis. Com as minhas correntes, queria cumprimentá-lo como amigo, pois não sabia de sua delação. Logo senti a amargura da acusação frontal. Pesou-me mais do que as minhas próprias correntes que eu transportava. Era ele o delator.

Sempre nos interrogatórios as mesmas perguntas. Qual a verdade sobre a sublevação de Vila Rica? Nunca dei um nome sequer, nunca falei a palavra “levante”, não tinha nada a confessar a ninguém. Principalmente a esses juízes. Tantos eram os amigos aprisionados, como fiquei sabendo depois. Alvarenga Peixoto em São João del-Rei, deixando a esposa Bárbara Heliodora na mais cruel desventura. O Ouvidor da Corte, Tomás Antônio Gonzaga, preso oito dias antes de seu casamento com Maria Doroteia Joaquina de Seixas, sua Marília de Dirceu. Tantas eram as infelicidades. Pobres e infelizes companheiros!

Planos, delações, depoimentos, acusações infundadas. Estou rodeado de zombarias, insultos, mofa. Sou um louco, gênio ardente, homem sem nenhum escrúpulo, rústico, atroado.

E essa devassa foi finalmente concluída, documentada pelas mãos dos meus juízes inquiridores que a arremataram como quiseram. Eles construíram essa devassa, forjaram, mentiram, torturaram até conseguir as formas e os conteúdos desejados. Ninguém por mim. Fiquei só, mas, perante o tribunal, respondi: NÃO.

Num dos interrogatórios, o juiz mais acusava do que perguntava e acabou por se exaltar e declarou: (Essa declaração pode ser feita por locutor off, com voz cavernosa)

- Você é o cabeça do motim da capitania de Minas Gerais! Você é o louco da sedição. Você convocou e convenceu até estrangeiros à sua causa. Você é um covarde, alferes traidor de sua Majestade! Todos os seus companheiros são unânimes em confirmar que suas palavras inflamadas levaram todos à desgraça, ao infortúnio, ao sofrimento sem limites. Confesse, traidor!

E assim prosseguiu mais acusando do que perguntando. Na minha vez, respondi:

- Projetei, sim, o levante para criar uma pátria livre e rica! Sempre neguei, mas não foi por covardia. Não queria implicar meus amigos e companheiros, justamente para preservar a integridade de cada um deles. Todos me ouviam, me incentivavam, me acompanhavam. Tudo neguei por eles. Pelos meus amigos! Digo, agora, diante destas circunstâncias, com a clareza das minhas convicções – sim, é verdade que eu premeditava o levante. É minha a ideia. Planejei tudo sozinho. Tenho a fronte erguida para os meus ideais de uma pátria livre e independente do jugo português. E queiram ou não os senhores juízes deste tribunal, mais hoje, mais amanhã, as sementes germinarão e o Brasil será uma das maiores nações livres do mundo. Livre do jugo de quem quer que seja. Esta é a minha convicção inabalável. Nunca uma confissão.   

E o juiz ditou para o escrivão: “confessou livre de ferros e em liberdade” – Não tive como não rir no meu íntimo mais profundo – livre de ferros e em liberdade.

Meus bens foram confiscados? Sim. Duas canastras com meus objetos pessoais e instrumentos de dentista, uma sesmaria, três escravos, alguns livros. No mais, uma cabeça cheia de ideais republicanos.

Os interrogatórios terminaram. Saiu a relação dos condenados e as sentenças, no dia 18 de abril de 1792. Trinta e quatro réus. Três deles faleceram nesse período. Esses réus tinham direito a defesa, por um advogado indicado. Ele pediu clemência e nada mais.

A sentença foi longa e triste. Foram trazidos os réus para a sala de oratório do presídio. Quando se reuniram, nem mais se reconheciam. Grisalhos, envelhecidos, pálidos, emaciados. Os olhos deslumbrados pela luz, vestidos em panos de algodão. Aproximaram-se uns dos outros. E as pesadas correntes tiniam ao se abraçarem. E falavam incontrolavelmente como se estivessem sedentos de conversa, depois da ausência por longa viagem.

Levaram 18 horas lavrando a sentença, terminada às duas horas da madrugada. O próprio Vice-Rei, Conde de Resende, fez questão de acompanhar o desfecho. Onze religiosos do convento Santo Antônio foram imediatamente chamados, pois nenhum condenado à morte poderia deixar de receber assistência religiosa.

Todos condenados ao enforcamento – eis a sentença.

Desespero geral. O dia amanhecia com jatos de luz penetrando pelas frestas das pesadas portas e pelas grades do presídio. E o advogado de defesa? Pediu que a pena fosse comutada em cárcere perpétuo. Mas o desânimo havia turvado o espírito de todos. A sentença parecia ter vindo sem perspectiva de mais defesa alguma.

Uma sentença complementar, entretanto, veio em seguida. Imagine a ansiedade dos réus. Era já no dia 19 de abril, quando entrou no presídio um séquito de oficiais da justiça e alguns juízes. Com a entrada do escrivão, todos se calaram. Foi um instante supremo. Desenrolou-se um maço de laudas escritas. Eu estava com o meu colar de correntes de ferro ao pescoço, aguardando o desfecho.

Todos os recursos do advogado de defesa foram rejeitados.

A continuação da sentença final foi lida: “Em observância à carta da dita Senhora, rainha de Portugal, manda-se que se execute inteiramente a pena da sentença ao infame réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha Tiradentes, da Cavalaria Paga de Vila Rica, que concebeu o abominável intento de conduzir o povo da capitania a uma rebelião, por ser o único que, na forma da carta, se faz indigno da Real Piedade. Quanto aos demais réus, a quem deve aproveitar a clemência real hão por comutada a pena de morte na de degredo perpétuo.” (Os termos da sentença podem ser proferidos por locutor off. em voz cavernosa)

E concluiu: “Fica condenado o réu Joaquim José da Silva Xavier a ser conduzido com baraço e pregão, pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra de morte natural para sempre e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica onde, em lugar público, seja pregada em um poste alto, até que o tempo a consuma. Ainda, seu corpo deverá ser dividido em quartos e pregados em postes pelo caminho de Minas. Declaram o réu infame e seus filhos e netos, tendo-os e os seus bens aplicam para o fisco e Câmara Real. A casa que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique, e não sendo própria, será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados e, no mesmo chão, levantará um padrão, pelo qual se conserve em memória a infâmia deste abominável réu.” (Os termos da sentença podem ser proferidos por locutor off, em voz cavernosa)     
                                                                                                                                                                                                                                                                                       
Neste momento, eu tinha o olhar perdido no espaço.   
          
Uns e outros se abraçavam e uma Salve Rainha foi rezada com muito fervor, entrecortada por explosões súbitas de choro e gritos de euforia. Na realidade, tudo estava previsto e os juízes fizeram apenas uma encenação de tragédia, em suspense, aterrorizando os réus.

Enquanto todos festejavam aos gritos de euforia, eu estava a um canto, realmente só. Nenhum abraço, nenhuma palavra de solidariedade ou conforto. Assim permaneci calado até que pudesse felicitar um a um pela graça que tinham conseguido. Felizmente, não levo ninguém comigo! Dez vidas eu daria se as tivesse para salvar a deles. Eu sou a causa da perdição desses homens, amigos e companheiros.

E a sentença foi executada. Após o enforcamento, o meu corpo foi subdividido em quartos a machado, como estava previsto, e hasteados no caminho de Minas. Minha cabeça foi levada a Vila Rica e, em solenidade pública foi hasteada como uma bandeira aterradora para gerações futuras. Deveria deteriorar nesse mastro infame. Na calada da terceira noite porém, alguém afrontou as autoridades da Capitania e levou a minha cabeça para algum jazigo desconhecido.

Nada mais tenho a dizer. Disse antes que não sabia de onde vinha. Nada mais tenho a dizer. Estou certo de que o povo brasileiro, de uma forma longínqua, usufrui um pouco do ideal deste louco falastrão. Dez vidas eu daria, em mil pedaços poderiam subdividir meu corpo para plantar a semente da liberdade e para vê-la germinar vigorosamente em meu país, com uma república livre e independente, com uma bandeira, com os escravos libertados e com uma universidade criada em Vila Rica. Nunca me arrependi do que falei ou do que fiz. Este louco falastrão nunca teve um crime para confessar e nunca se curvou diante dos opressores estrangeiros. Ele teve apenas a ousadia de responder simplesmente: NÃO!!!

(Entregam-lhe duas canastras. Abre uma delas e surge a bandeira de Minas. Balança-a no ar. Abre a segunda e surge a bandeira do Brasil. Balança-a no ar, ao som do hino da Independência cantado em coro, com a participação da plateia. – Ao final, surgem acordes do Hino Nacional)   
      
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