sábado, 23 de maio de 2015

O FILHO, UMA VÍTIMA INDEFESA



Pais, navegantes de primeira viagem... Escola de pais? O filho nasce sem o manual do usuário.  As lambadas dos cintos eram os manuais de pedagogia para a escola da vida . Os limites são definidos pela ignorância dos pais.

Levantamos cedo, como de costume, numa fazenda. Penso que foi uma manhã excepcional. A moça, Maria do Carmo, filha do ex-escravo, tio Mariano, estava atrasada, para acender o fogo do fogão e fazer o café. Fazia frio. Eu me sentava no aparador do fogão de lenha, e a Maria do Carmo implicava comigo, não sei mais por quê. Todas as pessoas da casa se reuniam na cozinha, esperando o café da manhã. Meu avô, Tatão Bretas, minha avó, Vovó Iaiá, meu pai, minha mãe, Élvia, Irene, Maria Luísa e Líbio. Mais alguém? Nem me lembro. E nem sei mesmo se esse teatro, ou essa plateia comportava essa turma toda.  Mas a cozinha era grande e tinha um esteio fino, redondo, bem liso, fincado no meio da cozinha, talvez apoiando a esteira de taquara, no teto. Na parte esquerda, havia uma bica d´água, correndo firme e constante, num velho tanque de cimento e pedras.
Disso eu me lembro bem. Então, como disse, eu estava sentado no aparador do fogão, bem na boca do fogão. Maria do Carmo tentava acender o fogo, muito afobada. Implicou comigo, mandou eu me afastar ou que saísse dali. Estava atrapalhando o serviço dela. Eu fiquei meio chateado com essa implicação dela. Assim, quando ela riscou o fósforo, eu soprei e apaguei-o. Claro que eu não devia fazer isso. Ela riscou então o segundo fósforo e eu o soprei, outra vez. Aí, ela disse: “Esse menino é um diabo. Não me deixa acender o fogo.” Imagino que foram estas as suas palavras. Jogou a culpa toda por cima de mim. Meu pai aproximou-se. Ela, Maria do Carmo, riscou o terceiro pau de fósforo. Eu soprei, outra vez. Que idade eu devia ter? Não devia passar dos três anos de idade. Isso mesmo, eu devia ter três anos. Era magrinho e complicado mesmo. Então, nesse terceiro fósforo riscado, apagado por mim, chegou a vez de o meu pai entrar em cena. Agarrou-me pelo braço e me jogou no meio da plateia. Num átimo, puxou o cinto de couro da cintura e começou com lambadas nas minhas pernas. Umas três ou quatro para começar. Depois, a fúria chegou, subiu à cabeça, e reiniciou com as lambadas pelo corpo inteiro, sem olhar em que parte do corpo ele batia. A plateia ficou pasma. As lambadas continuaram. Ninguém interferiu, assistindo a tudo sem nada dizer ou interceder. 
Quanto tempo durou esse exercício? Penso hoje que nem a minha mãe ousou me defender. Meu pai bateu tanto quanto quis. Quando ficou cansado, parou. Parou por quê? Quando parou? Não sei. Deve ter ficado aliviado, depois, pelo cumprimento de sua função de pai e de responsável pela formação do meu caráter. Será que eu tenha aprendido alguma coisa com esse episódio? Será que ele ficou satisfeito, com a alma lavada? Nem sei. Penso que o dia dele tenha sido ainda pior do que o meu. Será que teve remorso? Fui socorrido pelos meus avós. Devo ter gritado e chorado com todas as forças de que dispunha. Sei que sofri fisicamente com essas lambadas, mas também de vergonha por ter passado por esse constrangimento na presença de toda a constelação familiar. Se eu não tivesse sentido muito ódio, ódio mesmo, teria me esquecido desse castigo. Nem sei nada mais do que isso. O que aconteceu depois comigo, não tenho nenhuma lembrança. Só sei que, depois disso, e em toda a minha vida, meu pai nunca mais foi o meu herói. Tempos depois, meu avô teria dito que meus pais não tinham capacidade para me entender. Na verdade, eu não era um roceiro. Tinha nascido na Capital do estado e tinha convivido, com pessoas de outro nível cultural e social, até aos dois anos de idade. Minha estrutura de personalidade já estava bem alicerçada aos dois anos de idade. E porque isso ficou gravado nas minhas retinas? Digo retinas porque vejo toda a cena, como uma visão fantasmagórica que me acompanha até hoje. Não tenho ainda a intenção de apagá-la, já que ando curtindo a década de oitenta.          
                    
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