quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

EXPRESSÕES ORIUNDAS DO PERÍODO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Mesmo as palavras mais corriqueiras possuem uma história e sua própria árvore etimológica. Naturalmente que toda e qualquer expressão popular, das mais sábias e profundas às mais simples e sem sentido, possuem uma origem, ora curiosa e interessante, ora sombria e simbólica de um passado sinistro.


TEM CAROÇO NESSE ANGU
A expressão, que significa que alguém estaria escondendo algo, tem sua origem em um truque realizado pelos escravos para melhor se alimentarem. Se muitas vezes o prato servido era composto exclusivamente de uma porção de angu de fubá, a escrava que lhes servia por vezes conseguia dar um jeito de esconder um pedaço de carne ou alguns torresmos embaixo do angu. A expressão nasceu do comentário de um ou outro escravo a respeito de certo prato que lhe parecesse suspeito.

A DAR COM PAU
“Pau” é um substantivo utilizado em algumas expressões brasileiras, e tem sua origem nos navios negreiros. Muitos negros capturados preferiam morrer a serem escravizados e, durante a travessia da África para o Brasil, faziam greve de fome. Para resolver a situação, foi criado então o “pau de comer”, uma espécie de colher que era enfiada na boca dessas pessoas aprisionadas por onde se jogava a comida (normalmente angu e sopa) até alimentá-los enfim. A população incorporou a expressão.

DISPUTAR A NEGA
Essa expressão, que significa disputar mais uma partida de qualquer jogo para desempatá-lo, possui sua origem não só na escravidão, como também na misoginia e no estupro (o que espanta que até hoje seja utilizada com tanta naturalidade). Sua história é simples e intuitiva: quase sempre, quando os senhores do passado jogavam algum esporte ou jogo, o prêmio era uma escrava negra.

NAS COXAS
A origem da expressão, que quer dizer algo mal feito, realizado sem capricho, é imprecisa, e não há consenso sobre se ela viria de fato do período da escravidão. De todo modo, há vertente mais popular afirma que a expressão viria no hábito de os escravos moldarem as telhas em suas coxas que, por possuírem tamanhos e formatos diferentes, acabavam irregulares e mal encaixadas.

ESPÍRITO DE PORCO
Ainda que a origem da expressão venha da injusta má fama associada ao animal, por uma ideia de falta de higiene, sujeira e impureza, tal má fama é oriunda de princípios religiosos. Durante o período escravocrata, os escravos se recusavam e eram obrigados a matar o animal, para que servisse de alimento. A recusa vinha porque se acreditava que o espírito do animal abatido permaneceria no corpo de quem o matasse pelo resto de sua vida e, para complementar tal crença, a incrível semelhança que o choro do porco possui com um lamento humano tornava o ritual ainda mais assustador.

PARA INGLÊS VER
Essa expressão tem sua origem na escravidão, e também no mau hábito ainda atual brasileiro de aprovar leis que não “pegam” (que ninguém cumpre e nem é punido por isso). Em 1830, a Inglaterra exigiu que o Brasil criasse um esforço para acabar com o tráfico de escravos, e impusesse enfim leis que coibissem tal prática. O Brasil acatou a exigência inglesa, mas as autoridades daqui sabiam que tal lei simplesmente não seria cumprida – eram leis existentes somente em um papel, “para inglês ver”.

BUCHO CHEIO OU ENCHER O BUCHO
Expressão mais comum em Minas, era usada tanto pelos escravos quanto por seus exploradores, evidentemente que com outra conotação da que se usa hoje. Atualmente significando estar bem alimentado, de barriga cheia, na época significavam a obrigação que os escravos que trabalhavam nas minas de ouro possuíam de preencher com ouro um buraco na parede, conhecido como “bucho”, para só então receber sua tigela de comida.

MEIA TIGELA
A partir da expressão anterior, a história segue, dando origem a expressão “meia tigela”, que significa algo sem valor, medíocre, desimportante. Quando o escravo não conseguia preencher o “bucho” da mina com ouro, ele só recebia metade de uma tigela de comida. Muitas vezes, o escravo que com frequência não conseguia alcançar essa “meta” ganhava esse apelido. Tais hábitos não eram, porém, restritos às minas, e a punição retirando-se parte da comida era comum na maioria das obrigações dos escravos.

LAVEI A ÉGUA
A expressão “lavar a égua”, que quer dizer aproveitar, se dar bem, se redimir em algo, vem também da exploração do ouro, quando os escravos mais corajosos tentavam esconder algumas pepitas debaixo da crina do animal, ou esfregavam ouro em pó em sua pele. Depois pediam para lavar o animal e, com isso, recuperar o ouro escondido para, quem sabe, comprar sua própria liberdade. Os que eram descobertos, porém, poderiam ser açoitados até a morte.

EXPRESSÕES RACISTAS
De todos os seus vícios errantes, existe um que o Brasil se acostumou a repeti-lo sem se questionar. Mesmo com todo histórico de escravidão vivido pelo país. Estas expressões listadas,que colocam o negro como o oposto de positivo. 
  • Serviço de preto ou baianada
Não é preciso explicar que na Bahia a maior parte da população é negra. Essa expressão é usada quando um serviço é mal feito. Outro reflexo do período da escravização onde os negros faziam os trabalhos sob chibatadas, sol quente e com pouca alimentação. Desqualificar determinado esforço e/ou trabalho, ou seja, fazer “serviço de preto” é igual a ser desleixado. O negro sempre é associado a algo ruim. 
  • A coisa tá preta 
Esta expressão fala por si só: se a coisa está preta, é porque ela não está agradável, ou seja, uma situação desconfortável. 
  • Mercado negro 
É aquele que promove ações ilegais, e mais uma vez é a palavra negro sendo usada com conotação desfavorável. O negro, na expressão, significa ilícito. 
  • Denegrir 
Esta palavra é recorrente quando acreditamos que estamos sendo difamados, é uma palavra vista como pejorativa, porém seu real significado é “tornar negro”. Se tornar algo negro é maldoso. 
  • Inveja branca 
Como sendo a inveja boa, “positiva”. 
  • Da cor do pecado 
Outra expressão que faz a mesma associação de que negro = negativo, só que de forma mais subliminar, não recorrendo a termos como negro ou preto. Geralmente essa expressão é usada como elogio, porém vivemos em uma sociedade pautada na religião, onde pecar não é nada positivo, ser pecador é errado, e ter a sua pele associada ao pecado significa que ela é ruim. 
  • Morena/mulata de tipo exportação 
No Brasil, os melhores produtos são geralmente exportados. A expressão morena tipo exportação tem uma conotação sexual , usado para descrever mulheres negras com corpos exuberantes. Esse elogio resgata o tratamento dispensado à mulher negra no seio da senzala, da casa grande. O pensamento que a reduz em brinquedos sexuais. Dizer que uma mulher negra é uma “mulata tipo exportação” transforma a mulher negra em “peça” que alcançará boa cotação no mercado onde a carne mais barata é a nossa. O nome desse mercado é exotificação. 
  • Negra(o) de beleza exótica ou com traços finos 
Quando se imagina que ser uma mulher negra bonita é ser “tipo exportação”, ter “traços finos” e assim poder ser a dona de uma “beleza exótica”. Ser negro e poder ser considerado bonito está relacionado a não ter traços negros, mas sim aqueles próximos ao que a branquitude pauta como belo, que é o padrão de beleza europeu. Sim, isso é racismo, e dos mais comuns que a gente vê por ai, está hiper sexualizando e exotificando quando usam essas expressões. 
  • Não sou tuas negas 
Facilmente explicável se lembrarmos de que quando se tratava do comportamento para com as mulheres negras escravizadas, assédios e estupros eram recorrentes. A frase deixa explícita que com as negras pode tudo, e com as demais não se pode fazer o mesmo, e no tudo está incluso desfazer, assediar, mal tratar, etc, etc. 
  • Ovelha negra da família 
É uma expressão popular utilizada para representar a peculiaridade de uma pessoa que é diferente das outras, ou seja, que está fora dos padrões considerados normais pelo seu grupo social. 
  • Cabelo ruim, Cabelo de Bombril, Cabelo duro e, a mais desnecessária, Quando não está preso está armado 
A questão da negação da estética negra é sempre comum quando vão se referir aos cabelo Afro. São falas racistas usadas, principalmente na fase da infância, pelos colegas, porém se perpetuam . 
  • Nasceu com um pé na cozinha 
Expressão que faz associação com as origens, “ter o pé na cozinha” é literalmente ter origens negras. A mulher negra é sempre associada aos serviços domésticos, já que as escravas podiam ficar dentro das casas grandes na parte da cozinha, onde, inclusive, dormiam no chão (sua presença dentro da casa grande facilitava o assédio e estupro por parte dos senhores. 
  • Barriga suja 
Outro termo que faz relação à origem, usado quando a mulher tem um filho negro. Se ela teve um filho negro, algo impuro. 
  • Seu macaco 
Esta expressão associa à cor da pele negra a um animal próximo na escala evolutiva, porém intelectualmente inferior. Significa dizer que a raça negra é menos gente do que os caucasianos. 
  • Amanhã é dia de branco 
Durante a escravização os negros eram forçados a trabalhar e ainda assim eram chamados de “vagabundos”, “preguiçosos”. O trabalho era dos brancos em fazer os negros produzirem alguma coisa, já que eram considerados como animais. Dia de branco era o dia de produzir para o branco. Não confundam preguiça com resistência a escravização.

É claro que existem inúmeras outras expressões que apontam claramente o racismo no cotidiano, e, infelizmente, inúmeras pessoas, mesmo sabendo dos fatos e tendo acesso às explicações, vão dizer que tudo é pura banalidade e, provavelmente, continuar usando essas palavras e expressões.

O que o inocente ‘TCHAU’ tem a ver com escravidão ?
Quem não sabe que a interjeição de despedida mais usada no português brasileiro, tchau, veio do italiano ciao – uma palavra ambivalente que, em sua língua original, pode ser empregada tanto com o sentido de “olá” quanto com o de “adeus”? Consta que essa importação se deu no início do século 20, com possível influência da forma chau usada no espanhol sul-americano: a grafia aportuguesada “tchau” data de algum momento em torno de 1925, segundo o Houaiss – que curiosamente, contrariando seus padrões, não fornece a fonte dessa informação.
Se é famoso o parentesco de tchau com ciao, muito menos conhecida – na verdade, praticamente secreta – é a relação direta que existe no italiano entre as palavras ciao e schiavo, isto é, tchau e escravo. Ciao vem a ser uma variação dialetal de schiavo surgida no Norte da Itália.
A palavra schiavo não é mais nem menos semanticamente pesada do que o português escravo e o inglês slave, entre outros termos da mesma família que se espalharam pelas línguas ocidentais. Todos derivam, naquilo que uma sensibilidade contemporânea classificaria como o mais alto grau da incorreção política, do latim medieval slavus, sclavus. Trata-se da mesma origem do termo eslavo, nome genérico dos habitantes da Europa central e oriental que os povos germânicos escravizaram maciçamente na Idade Média.
Sendo assim, como foi que o termo schiavo, com suas conotações sombrias, veio a se tornar uma saudação jovial e despreocupada em italiano? O que à primeira vista não faz o menor sentido é na verdade de solução simples: ciao é o produto final de uma série de abreviações efetuadas na expressão de cortesia sono suo schiavo (“sou seu escravo”), equivalente à nossa formula “sou seu criado”.

Referências
http://www.ceert.org.br/
http://www.zumbidospalmares.edu.br/
http:/linguarudomaldito.blogspot.com.br 
http://veja.abril.com.br/

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

CRIME PEDAGÓGICO ?



Causar voluntariamente a morte do sonho de uma jovem estudante!!!. O imaginário da maldade humana acompanha tantas obras beneméritas. Cada qual com a sua verdade, condenando os outros, pensando ser um termômetro social, um parâmetro para julgar a humanidade.



Uma adolescente, 15 anos, gestante solteira, foi expulsa do colégio, sem mais nem menos. Aconteceu na década de setenta, numa cidade do interior do estado de Minas Gerais, em pleno século XX, apesar da Lei 6.202 de 17 de abril de 1975, da Lei 6.503 de 13 de dezembro de 1977 e da Lei 7.692 de 20 de dezembro de 1988 que tratam da proteção à gestante. Mináglia, nome fictício do município do norte do estado de Minas Gerais, mantém um grande colégio normal de freiras franciscanas, holandesas, em prédio doado pelo estado, desde 1926. Era o único estabelecimento de ensino ginasial e normal de vasta região. A irmã superiora, diretora do estabelecimento, julgou ser uma temeridade social manter uma gestante adolescente como aluna, num estabelecimento de jovens de sexo feminino, mesmo em final de curso. Expulsou a aluna, sem dó nem piedade. Que poderia haver de mal? Disseminar exemplos? Talvez a ousadia e irreverência da aluna, transmitindo exemplo para outras colegas de mesma idade? Não se pode saber exatamente o que passou na cabeça da irmã diretora. Preservação da moral das famílias da região? 
A aluna foi convidada a comparecer ao gabinete dessa diretora e escutou uma possível decisão do colegiado. Um comunicado verbal, cujas palavras devem ter ferido a sensibilidade da aluna. Uma comunicação escrita foi encaminhada aos pais. A vergonha e a humilhação! Como continuar os estudos? Onde? Tudo isso não foi apenas um dos desastres para a família. A cidade inteira comentou o fato, ou melhor, os fatos. Tanto da gravidez indesejada como da expulsão do colégio. Muitas famílias consideraram uma atitude correta do colégio e aplaudiram a irmã diretora. As colegas de sala choraram. Choraram e lamentaram. Ensaiaram greves, greves de silêncio e abstinência de reação diante de provas e trabalhos escolares. Cruzaram os braços. Do silêncio nascem providências tantas, sem nenhum resultado. Não houve greve, houve manifestação de desagrado. Tantas outras reações foram investidas no colégio. Tudo em vão.
O desespero da família da gestante foi motivo de comentários violentos na cidade. Um advogado da família entrou com habeas corpus. A liminar foi negada pelo juiz. Outros advogados associados entraram em queixa-crime contra a decisão da diretora. Tudo encaminhado ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. O tempo passa. Esperar. A gestante perdeu em todas as estâncias. O processo foi arquivado e faz parte, hoje, do acervo do museu do Tribunal, disponível para visitação pública.
O que foi feito da aluna gestante? Vítimas não têm vez, permanecem no anonimato e cada personagem chora no seu canto. Foi condenada a permanecer no meio rural e dedicar-se ao trabalho doméstico, pelo resto de sua vida. 
Esta história parece uma pequena fábula, mas não é uma ficção. Serve entretanto para alertar os profissionais da educação sobre a nobre responsabilidade profissional. A ação dos mestres é, antes de tudo, de solidariedade e apoio a jovens em crise de qualquer natureza.

domingo, 20 de novembro de 2016

ENTREVISTA VIRTUAL COM O BEATO ANTÔNIO CONSELHEIRO

ANTONIO CONSELHEIRO E SEU MOVIMENTO MESSIÂNICO
A palavra de Deus semeia amor e bondade. Da sua mão decorre o trabalho para a sobrevivência. Nosso povoado sempre procurou obstinadamente a paz e trouxeram-nos a guerra, a destruição, a morte. A alma dos sertanejos, degolados, mortos e insepultos, paira nos céus desta República. 


ENTREVISTADOR – Beato Antônio Conselheiro, louvado seja nosso senhor, Jesus Cristo!
- ANTÔNIO CONSELHEIRO – Para sempre seja louvado, irmão!
E – Senhor Antônio Vicente Mendes Maciel! O senhor chegou a esta aldeia de Canudos, norte do estado da Bahia, portador da desgraça e da destruição?
AC – Prezado amigo! Cheguei a esta comunidade por missão imposta pelo meu Deus, para salvar seu povo, ajudar, trabalhar, ensinar. Tudo para a glória de Deus.
E – E no final, chegou à destruição total do povoado.
AC – Não por minhas mãos, amigo! Nunca saímos como forasteiros a provocar e fazer guerra. A destruição total foi feita, aqui, a Guerra de Canudos, em 1896 e 1897, pelo Exército da República e foi ocasionada pela inveja do nosso desenvolvimento social e econômico. Os pobres famintos chegaram bem perto do paraíso, pelo trabalho e pela organização da comunidade. E pela participação do meu povo.
E – Seu povo?
AC – Passei a considerar a população de Canudos como meu povo, meus amigos, amigos fraternos.
E – Por que essa amizade?
AC – Quando bati às portas desta aldeia, a população me acolheu como um emissário da palavra de Deus.
E – Emissário? O senhor veio de onde?
AC – Vim andando a pé, de pouso em pouso, suportando a fome, a sede, o cansaço, a desesperança. Perdido no espaço e no tempo dos sertões torrados pelo sol e pela seca. Quantos anos tenho andado pelo sertão, levando a palavra de Deus? Nem sei. Talvez tenha sido 10 anos? Talvez, 20? Nunca mais peguei num calendário. Meu guia é o próprio destino.
E – Sim! Mas a sua origem?
AC – Minha terra é Quixeramobim, no Ceará, onde nasci em 1830. Minha família tinha posses, estudei muito. Trabalhei desde jovem. Fui professor e advogado prático, isto é, sem diploma. Atendia meu povo de muitas maneiras. Como professor, ensinava de tudo. De tudo que o povo precisasse. Eu era uma pessoa socialmente ajustada, até que um dia, um desastre, o desmoronamento do meu lar. Meu lar foi desfeito pela traição da minha esposa. Fiquei triste demais, desmoralizado socialmente. Saí pelo mundo, pregando a palavra de Deus, a misericórdia.
E – É um sacerdote?
- AC – Sou um sacerdote de Deus pela liberdade de voluntário, a serviço da salvação da humanidade. Não sou sacerdote de formação. Sempre fiquei ao lado do povo pobre desassistido, abandonado. No sofrimento físico e mental.
E – Voluntário?
AC – Sim, voluntário! Porque não? A palavra de Deus é livre para todos. A mão de Deus está disponível para todos os que veem o caminho do bem, da misericórdia. E mesmo, o caminho da glória na eternidade.
E – E o quê o senhor fazia em Canudos?
AC – Pregava a palavra de Deus, primeiramente. Depois, fazia de tudo. Tudo que fosse preciso. De pedreiro a professor. Ajudava na construção das casas de quem quer que fosse. Na organização da aldeia. Na agricultura, na pecuária. Ensinava nas minhas pregações diárias. Incentivava a preparação para o trabalho. Vim para ajudar a todos e não para pedir ajuda.
E – Ajudava na construção desses casebres, dessas taperas?
AC – Nunca pensamos em construir palácios! Sim, para os pobres tinha que ser uma construção imediata, pequena que fosse. Uma tapera, ou mesmo um esconderijo. Tudo para hoje ou para agora. Um agradecimento à obra de Deus.
E – Mas o senhor mesmo era um pobretão!
AC – Sim! Um pobretão! Isso não significa que fosse um ignorante qualquer. Tinha estudos e sabia alguma coisa sobre organização e orientação do trabalho.
E – E o povoado cresceu?


AC – De forma inesperada! A população aumentou. Além dos forasteiros sem pouso, chegaram milhares de ex-escravos, perdidos e abandonados no sertão, com suas famílias, desalojados das fazendas  dos latifundiários. Libertados da escravidão, mas sem trabalho, sem rumo, sem destino. Tão pobres e miseráveis como todos nós em Canudos. Fugindo da seca. Mas a seca estava em todos os lugares.

E – Seca?
AC - Um período de seca interminável. Canudos estava às margens do rio Vaza Barris e podia sobreviver. Resolvi fundar outro povoado mais produtivo. Dei o nome de Belo Monte, mesmo vendo que estávamos num vale prodigioso. E Canudos não suportava mais tanta gente que todo dia ia chegando.
E – E havia alimentação e moradia para todos esses forasteiros?
AC – Tudo pouco e repartido. Tudo distribuído de mãos abertas. Moradia? Como disse, até mesmo esconderijo do sol e do sereno da noite tinha para todos. E todos agradeciam. Ninguém pedia nada além do que podia existir para ele. Ninguém reclamava ou se lastimava.
E – E assim ficou um grande povoado de pobres famintos ou até miseráveis?
AC – Sim! Por que negar? Pobreza não é doença e não é motivo de vergonha ou desespero. E isso não significava que todos deviam ficar de braços cruzados, aguardando a chegada de mais sofrimento. Lutar todos os momentos da vida. Sobreviver!!
E – E o senhor transformou-se num prefeito?
AC – Nunca agi como comandante ou delegado. Bondade e amor escorre das mãos de Deus. Distribuí tarefas e responsabilidades para as lideranças de acordo com os diversos setores de produção.
E – Seus ministros ou secretários?
AC – Cada responsável por um setor tinha o seu grupo de trabalho. Produção para distribuição para todos. O lucro era a satisfação dos resultados. Nesse ritmo surgiu o entusiasmo. A luta contra a fome era a meta principal.
E – E a população cumpria  as suas determinações?
AC – De certa forma, sim. Não havia uma determinação, mas orientação no trabalho, visando resultados maiores. Povo tão carente que muitas vezes resistia em começar uma tarefa, por julgar-se incapaz ou impossível de ser realizada.
E – Transformou-se assim num comandante?
AC – Comandante é termo militar. Nada do nosso feitio. Distribuir responsabilidades de acordo com a habilidade e interesse de cada um de nós. Desde a higiene, a saúde, a educação. A limpeza o bem-estar.
E – E a população obedecia ao que o senhor pregava?
AC – A princípio, não entendiam as palavras ou essas ideias eram novas para eles. Depois, eu mesmo peguei a executar as tarefas de varrer, limpar, organizar. Acharam então o caminho da ordem e do desempenho. Fui varredor e servente de pedreiro. Aí, começaram a me ajudar, até que tomassem o trabalho para eles mesmos. Dei exemplos de humildade e dedicação.
E – Viram que o pobretão podia fazer alguma coisa. Ajudar!
AC – Viram que eu queria fazer alguma coisa, antes de ficar falando palavras de Deus. Ação correspondente às palavras. Ajudava de porta em porta, ouvia e via a infelicidade geral. Minhas mãos afagavam e incentivavam. Não vou dizer que curavam, porque não tinha esse dom, mas abriam um pequeno sorriso de agradecimento. Eu, na minha simplicidade, ficava satisfeito com esse pagamento. Um pequeno sorriso é uma mensagem de agradecimento, vindo do coração.
E – E esse povoado foi enchendo de gente?
AC – Como disse, chegava gente todo dia. Nosso progresso começou a ser percebido pelos fazendeiros da região. Começaram a ter medo da nossa força. Nossa força? Eles eram os poderosos. Juntaram-se com a Igreja e levantaram histórias de que iríamos tomar as suas terras. Que iríamos marchar até a Capital e restaurar a monarquia. Coisas tão impossíveis, coisas imaginárias para causar a nossa desgraça. Na verdade, os fazendeiros tinham ficado sem os seus escravos, agora libertados. As fazendas ficaram improdutivas.
E – As fazendas ficaram sem empregados?
AC – Empregados? Ficaram sem escravos. Pagar empregados? Nunca pensaram nisso. Uma calamidade pagar alguém pelo trabalho. Eles mesmos, os fazendeiros, não queriam trabalhar. A escravidão era coisa do passado. Os últimos escravos abandonavam seus lares e rodavam perdidos no mundo.
E – E essa revolução propagada pelos fazendeiros e Igreja?
AC – Foi o início da nossa desgraça. De boca em boca, essa história da nossa revolução foi parar nas autoridades constituídas da República. Como podíamos fazer uma revolução? Nunca pensamos nisso. Nem sabíamos o que era isso. Nosso povo só pensava na sobrevivência, em como viver o dia de amanhã. Sempre nos armamos de paz.
E – Como que uma comunidade de miseráveis poderia fazer uma revolução?
AC – Como? A força das injustiças e a força dos poderosos informavam que o povo de Canudos, cá em baixo, sujava a água que eles bebiam lá em cima. Não tínhamos preocupação com a guerra, porque seria totalmente ilusória. Desnecessária. Poderiam arrasar toda nossa comunidade com um sopro mais forte, apenas. Não tínhamos condições de defender, quanto mais de atacar. Nunca iríamos sair do nosso território para qualquer ataque bélico. Uma ideia que nunca passou pela cabeça de nenhum de nós.
E – Fizeram uma revolução pela sobrevivência e pela paz?
AC – Na verdade, fizemos uma revolução branca, no despertar da força de trabalho dessa população que voluntariamente se agregava ao nosso modelo de vida. Essa a nossa força. E ela foi a nossa desgraça.
E – Mas que deu resultados?
AC – Da areia e das pedras surgem as flores e os frutos, plantados e cuidados com abnegação. Estávamos no caminho certo, superando as nossas dificuldades básicas. Passaram a me chamar de Conselheiro, de amigo, de pai. Eu não tinha mais nem um minuto de descanso. Atendia a todos a qualquer hora do dia ou da noite.
E – E os fazendeiros?
AC – Continuaram a nos agredir. Juntaram-se todos à Igreja e nos denunciaram à República, pedindo providências imediatas. Um só pedido: a nossa destruição. Nada mais.
E – E a guerra de Canudos começou?
AC – Quando começou o dia de 24 de novembro de 1896, bem de madrugada ainda, o Exército estava às nossas portas. Bem armados belicamente, fuzis e metralhados, nos acordaram. Nós, sem armamento, sem técnicas de combate, juntamos nossas ferramentas de trabalho, espingardas velhas, revólveres enferrujados, foices, facões, porretes e entramos em guerra. Matar ou morrer? Não. Morrer ou matar. Resistimos. O tempo foi a nosso favor. O sol abrasador chegou e nosso inimigo não ia suportar essa inclemência. Nossos soldados, sem pensar no que fazer, atacaram em retaguarda. No final da batalha, muitas mortes de ambos os lados, e o Exército teve de debandar. Cantamos vitória do povo unido e reunido. O Exército da República diz que apenas abandonou o campo de batalha e que não foi vencido. Então, por que debandaram? Foi a primeira vitória do nosso povo. Que força é essa? Que valentia e que coragem?
E – Sim. Mas o Exército voltou mais bem preparado!!!
AC – Agora, estávamos também mais preparados. Juntamos o armamento abandonado pelos adversários no campo de batalha e nossas forças se recompuseram. Nessa segunda investida do Exército, nossa vitória foi cantada em termos nacionais. O país inteiro comentava as nossas vitórias. Chegou, então, a terceira força, comandada por eminentes generais, vindos da Capital da República e foram rechaçados com violência. Até os generais foram trucidados. Não fomos buscar a guerra. Estávamos nessa guerra apenas para nos defender. Nossas orações eram dirigidas no sentido de pedir paz e que nos deixassem viver a nossa vida de sertanejos perdidos nesse deserto de sofrimento.
E – Mas seu dia chegou! O Exército tinha que lavar sua honra de três derrotas consecutivas.
AC – Foi a carnificina final e acabada. Desta vez, com equipamento de guerra pesado, arrasaram por completo a nossa comunidade. Degolaram mulheres, crianças e velhos. Tudo sem dó nem piedade. Incendiaram todos os nossos casebres. Casebres indefesos. Morte total. Desaparecemos do mapa. Eu mesmo, tive morte nesse dia. Mesmo assim, fui exumado e degolado a faca, para gáudio dos sádicos inimigos. Éramos nessa época, mais de 20.000 flagelados, mortos e degolados, cabeças cortadas. Do Exército, mais de 5.000 soldados perderam a vida. Essa foi a Guerra dos Canudos. Setembro de 1897. Que lucro teve a República? Decisão, decisões desastradas! Esta é historia contada e recontada por tantos quanto tiveram alguma referência desse desastre.
E – Essa guerra foi criminosa?
AC – Antes de tudo, toda guerra é criminosa, mas esta foi considerada como o maior crime, tido e havido, nesta República.
E – E o final dessa Guerra de Canudos?
AC – O conflito de Canudos mobilizou aproximadamente doze mil soldados, oriundos de dezessete estados brasileiros, distribuídos em quatro  expedições militares. Em 1897, na quarta incursão, os militares incendiaram o arraial, mataram grande parte da população e degolaram centenas de prisioneiros. Estima-se que morreram ao todo, cerca de 25.000 pessoas, culminando com a destruição total da povoação.
E – Sei que ao final dessa guerra, foi publicada uma série de obras, escritas por testemunhas oculares, militares, jornalistas, médicos e outros. Destaca-se o livro de Euclides da Cunha, Os sertões, 1902,  jornalista correspondente do jornal Estado de São Paulo. Um dos mais importantes marcos da literatura brasileira.
AC – Bem sei! Sei também e reafirmo que esta Guerra de Canudos constituiu-se num dos maiores crimes já praticados em território brasileiro. Covardia exacerbada. Acabaram com a pobreza do país? Desapareceu a miséria? Reina, agora, o silêncio em Canudos! Dormem em paz os sertanejos insepultos e sonhadores!  Tudo pela glória de Deus!
E – Beato Antônio Conselheiro, louvado seja nosso senhor, Jesus Cristo!!!
AC – Para sempre seja louvado, irmão.        



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