domingo, 30 de setembro de 2012

A SEGUNDA SAFRA DO FERRO - TEATRO

Rogério de Alvarenga
Adaptação: Wagner Assunção
Revisão: Omar Fürst
Tema: Sagarana/Guimarães Rosa/ Soroco sua mãe sua filha

A primeira edição desta peça data de 1980. Sempre foi uma ficção, embora a ficção deva sempre representar alguma realidade. Assim, desse tempo para cá, a tecnologia rompeu os padrões da tranquilidade provinciana e destruiu a monotonia dos métodos de trabalho. Entretanto, a crueza das verdades confirma a continuidade da degradação ambiental, da poluição, da corrupção, do domínio autoritário sobre a população e mesmo sobre as dignas autoridades regionais. Mudanças e mais mudanças, mas tudo continua na mesma situação, dantes referida.
                             Cartão de Carlos Drummond de Andrade



Personagens por ordem de entrada em cena:

Hortênsia – mãe de Soroco
Soroco – caminhoneiro
Lili – filha de Soroco
Juvenal – caminhoneiro, colega de Soroco
Rosemiro – idem
Amir – idem
Lucas – idem
Bruno - idem
Chefe da Oficina
Alcione – esposa do prefeito
Carolina – assistente social
Dona Rosa – funcionária da companhia
Dra. Marta - diretora da companhia
Alfeu – prefeito de Santa Maria de Itabira
Diretora da Companhia -
Madame Del Rio – esposa de funcionário da Companhia
Motorista da madame Del Rio
Auxiliar da delegacia
Delegado de Polícia



Cena I – Santa Maria de Itabira
Soroco, Hortênsia, Lili

Soroco - Acorda, mãe, já está na hora de levantar.
Hortênsia -  Fico abismada. Esse pessoal não trabalha mais e fica a noite inteira falando comigo  Eu fico só escutando.
S. Toma o café, mãe. Já está coado.-
H. É tanta gente que eu nem entendo, todo mundo que já morreu vem conversar comigo.
S. Gente que já morreu não volta, mãe.
H. Eles sabem das coisas. A cidade está no coração deles.
S. Eu não acredito.
H. Eu acredito. Você e Lili não veem as armadilhas que estão preparando pra nós.
S. Eu sei, mãe.
H. Vou morrer aqui mesmo.
S. Aqui todo mundo é irmão. Cidade pequena é assim mesmo.
H. É. Mas uma pessoa te ajuda, mas depois manda a conta. Eu pago porque preciso de ajuda mesmo. Hoje a gente está vivendo de rendas e bordados. O Geraldino tinha fazenda, tinha gado. 
S. Pouca coisa, mãe.
H. Tinha lavra e terno de vidro. Agora eu estou aí, sem anel e com as mãos escalavradas, sem anel, sem dedo e mesmo sem mãos.
S. Que é isso, mãe. De manhã e já pensando em coisas tristes.
H. Tristes, não. Estou vendo as coisas atrás da cortina de cetim, levantando a fumaça dos tempos. Converso com todo mundo que vem aqui. Fico sabendo de tudo. Fico pasma, estarrecida. Só que não posso fazer nada.
S. Não tem que fazer nada. Mãe, deixa que eu faça tudo. O serviço
da casa, a limpeza, a arrumação...
H. Você, Soroco, só vê caminhão na sua frente. Você, Soroco, fica rodando nos morros de Itabira, com aquele caminhão grande que o Geraldino nos deixou.  O que é que eu vou fazer com caminhão? Vou passear na Itabira?
S. E Itabira?
H. É um buraco. Já foi montanha e já teve o pico do Cauê, que ninguém mais sabe o que é. Um dia a Companhia vem buscar o fundo do rio também. Areia preta de ferro. O rio Jirau dava muito peixe. Secou. Ficou o fino do minério no fundo.  Mais minério do que ouro. Itabira está é cheia de peões. Só tem peões. Uma cidade cheia de peões.
S. Peão é gente também, uai!
H. Hum... É um presépio, sempre falei. Parece um presépio colorido com terra vermelha e poeira preta. Daquelas que mancham a roupa da gente. Eu fico triste. Nem fotografia na parede do poeta eu gosto de ver. A dele é muito antiga, está encardida. Tem muito tempo que ele tirou essa fotografia.
S. É recordação.
H. Hum... Dói no coração. A gente de Itabira tem o coração mole. Dizem que é de ouro, mas eu duvido. Se fosse a Companhia já tinha arrancado ele.
S. De onde é que a senhora tirou tudo isso, mãe? 
H. Pedra de ferro no calçamento das ruas. Hoje é asfalto. É o progresso. Iluminação do século XX. Admiro muito, mas fico pasma, estarrecida. Itabira alimenta o mundo, é o centro do mundo. Fico abismada.
S. Tenho que ir, mãe. Vou acordar a Lili.
H. Terra boa mesmo não é. Mas é rica. Aliás, era rica, porque o povo hoje é pobre. Parece rico e se engana. A Companhia é rica. E carregador de minério pode ficar rico? E picareta é instrumento científico?
S. É perigoso ficar falando demais, sem saber, mãe.
H. Eu sei de tudo. Eles vieram falar comigo esta noite, me informaram de tudo que está acontecendo nas cercanias. Eles voltam pra me contar tudo.
S. Quem morreu não tem mais voz. Não fala. Não liga pra isso não, mãe. Está na hora Já estou indo. Bença, mãe.

CENA II
Lili, Hortência

Lili – (Hino do Congresso Eucarístico realizado em Belo Horizonte, no ano de 1936) - Qual resplende em manhãs purpurinas/ O sublime clarão do arrebol/ Sobre o altar das montanhas de Minas/ Brilha a hóstia mais fúlgida que o sol/.Tu que és rei e que os povos dominas/ Ergue aqui teu trono Jesus.
Sobre as plagas formosas de Minas/ O Brasil para a glória conduz.
Hortênsia - Fico mesmo. Fico sozinha carregando meus mortos. Do lado esquerdo. Por isso caminho meio de banda. Não posso andar muito porque não me deixam. Mas o meu pensamento está solto ao vento. Passeia. Passeia com as asas abertas.

CENA III – Itabira
Juvenal, Rosemiro, Amir, Lucas

Juvenal - Esta oficina virou ponto de malandro?
Rosemiro - A gente sempre inventa um galho pra bater um papo, e ver como é que está a barra, companheiro.
Amir - O Lucas sempre tem notícias.
Lucas - E tenho mesmo. E quente!
R. Qual é o assunto, patrão?
L. Seu patrão é a Companhia, xará. Mas precisamos dar uma ajuda pro Soroco.
R. Estou sentindo cheiro de sacanagem. Ele pediu aumento pras viagens extras. Se vão criar caso com ele, estão nos espetando também.
L. Se a Companhia está querendo mais, que pague mais. Não tem meu pé me dói, uai.
R. Soroco trabalha feito burro, a gente acompanha.
L. E ele ainda está  com os problemas de casa.
J. Sacanagem das grossas.
A. Acho que temos que botar o pessoal ajudar a gente a encontrar uma solução.
L. Sei que o pessoal do volante acompanha. 
L. A gente tem peito, ou não tem?
J. Mandar a mãe e a filha do Soroco pra hospício em Barbacena é o fim da picada. Hospício é fogo, xará. Lá elas vão levar um ferro violento. Isto é sacanagem das grossas. A mãe é dele. A filha é dele. Ele faz delas o que ele quiser.
L. É bom a gente se informar melhor. No restaurante a gente conversa.


CENA IV – Santa Maria de Itabira
Alcione, Carolina, Hortênsia, Lili

Alcione – Posso entrar dona Hortênsia? O que há de novo nesta casa? 
Carolina – Tudo arrumado... Já almoçou?
A. E a Lili, cada vez mais bonita?
Hortênsia – Nada, dona Alcione. A Lili só canta. Os amigos já vieram. Hoje, queriam mandar o Soroco pro inferno. Soroco não sabe responder. Fica só olhando. Só pensa no minério e no caminhão. Aceita tudo. Ele é de paz exagerada. Não reage. Aceita tudo.
A. Ele trabalha muito.
H. A Lili não sai de casa nem pra arranjar namorado. Também aqui só tem chofer de caminhão e salário mínimo. Empregado bom fica na cidade grande.
Aqui é a mina. A mina do ferro e do ouro. O ferro pra Europa e pra Ásia. O ouro pra os diretores, encastelados no Rio de Janeiro. Nem sei por que.
A. Calma, dona Hortênsia, tudo está se arranjando na Itabira. A cidade progrediu muito pela Companhia. O Soroco está ganhando muito dinheiro também.
C. Já tem um caminhão dele mesmo, tem emprego, é um bom filho. A senhora deve ficar orgulhosa.
H. O caminhão foi do Geraldino. O Geraldino, mesmo não aparece. Foi de vez. Morreu carregando minério de ferro.
A. O Geraldino foi muito correto e viveu muito bem com a senhora.
C. Deus o tenha.
H. Uns ficam na porta da frente, vigiando. Outros na porta da cozinha, feito cachorro velho. A Lili fica sem jeito. Precisa sair. Passear nos morros de Itabira. Ver as paisagens destruídas. 
Lili – Tu que és rei...
A . Muito bem, Lili.
H. É isso aí o dia inteiro. Não acredito. Do lado esquerdo carrego meus mortos, por isso ando meio de banda.
A. A gente vai ajudar a senhora. A Companhia vai arranjar um lugar bom para a senhora morar e a Lili poder se tratar. Um lugar com recursos para uma boa qualidade de vida. 
C. Não vai ter preocupações, nada. Tudo pago pela Companhia. A senhora foi sempre uma boa professora. E continua professora.
H. Dava aulas o dia inteiro e me perguntaram: ”a senhora dá aulas o dia inteiro e ainda trabalha? Que podia responder? Agradeci as evidências do pensamento nacional.
C. A senhora ainda se lembra de muitas coisas do passado.
H. Não acredito em nada. A Companhia já levou o Soroco pra lá. Não tenho mais ninguém. Lili está sempre ausente. Aqui só vem gente que já foi. Do lado esquerdo, eu me entorto, a senhora já sabe. É o caminho no descompasso, por isso ando sempre meio de banda.
A . A senhora pode acreditar desta vez. Tudo novo, tudo bonito demais.
H. Eu acredito mesmo! Fico é só olhando. Veio pra cá, falando “esses e erres” e falando “xis” e coisa e tal. Só falação. O Geraldino ficava olhando mais que escutando. Era tanto xisxis sim, senhor. Mandar e obedecer sem piscar.
C. É. Ele não respondia nada? Nada?
H. Ele sabia. Chegava da Itabira e vinha me contar como era bonito ouvir a diretoria da Companhia falar. Aqui vai ter isso. Ali vai ter aquilo. Buraco e mais buraco. No fim era tudo buraco. Geraldino olhava. Como enxergar o fundo dos buracos. Vai ter uma lagoa bonita no fundo dos buracos. Que peixe vai nadar nessa lagoa? A diretoria falava: pra que peixe? Só a beleza. E o povo ria, ria e ria. E ria e aceitava e gostava. E gosta até hoje. Gosta e ri.    
A. Eles são muito educados e têm visão de futuro. Riqueza adormecida, dona Hortência. Arrancar a riqueza das profundezas. Povo rico, terra rica, pedra rica. Cidade em progresso crescente.
H. Itabira também fica escutando e olhando de banda.  Itabira tem história, tem hotéis, tem casarão do século dezoito. Tudo no chão. Tudo no chão.
C. Itabira podia ser uma cidade turística. Tem capelinha construída pelos Bandeirantes, construída pelos bandeirantes.
H. Mas ninguém dá valor.  Itabira vendeu as portas almofadas das suas casas, as sacadas de ferro e até os vidros coloridos das janelas. O povo ficou deslumbrado e aceitava dinheiro de qualquer um por um trapo velho qualquer. E destruíram a beleza das casas. Isso é invasão. Trocar ignorância por tapeação. Nada dessas velharias vale nada. Venderam tudo, destruíram tudo. Ficaram as ruas tortas e o pesadelo na alma.
A. Coisas velhas.
H. Todo mundo sabe que são coisas velhas. Consciência perdida, memória perdida. Quem é bom já foi e fala de longe.
A. Calma, dona Hortênsia.
H. Até a matriz de Itabira caiu redonda no chão. Inteira e de uma vez só. Caiu redonda. Alguém pode imaginar isso? Como é que uma igreja toda cai toda de uma vez sem nem um dedinho pra empurrar? Cadê esse dedinho que empurra? Cadê esse dedinho destruidor?
C. Isso foi mesmo. Um absurdo. A senhora tem razão.
H. Fiquei pasma, estarrecida. Não tinha flores nem horta. Caiu emporcalhando os jardins, assustando os pássaros. A fábrica de tecidos da Pedreira foi encoberta de minério fino. A barragem fechou a lagoa grande. A fábrica afundou inteira. De primeiro a ponta da chaminé aparecia para denunciar. Hoje, nem ela. Já derreteu e sumiu, também. Represa de navegação que ninguém pode navegar, nem pescar, nem buscar um balde de água porque tem segurança da Companhia. Até os peixes são carimbados e numerados. Quero ver se essa barragem um dia arrebentar. Adeus, Santa Maria de Itabira! As águas vão te levar. Sai de baixo, Santa Maria de Itabira.
A. A fábrica de tecidos da Pedreira estava improdutiva.
C. Lá agora tem uma represa tão bonita que a senhora falou.
H. Quero ver é quando o minério acabar. Os praianos vão ficar chupando o minério bruto. Ou tem que fazer mais buracos nos buracos.
C. Por enquanto só chupam os mineiros. Mas Itabira se transformou numa cidade grande. Tem festas e mais festas. Tem poeta pra festejar.
H. Agora só tem fotografia na parede. Ele foi embora e não voltou mais pra tirar fotografias. Adotou outra pátria, outro esconderijo. Festejar o què? De primeiro, escrevia, mandava versinhos de lembrança. O povo se animava.
C. É. Os meninos decoravam os versinhos dele pra recitar nos dias de festa.
H. O retrato da parede deve estar muito encardido. Memória vazia, esgotada. Lembranças perdidas. Agora, ah! Poeira de vidrilhos, ao sol brilhante, ondulante nas brisas matinais da cidade das itabiras. Qual borboletas azuis ou multicores tremula e esvoaça na  desesperada busca de reencontrar o solo de onde partiu.    
A. A senhora está nervosa. Os diretores da Companhia vieram para administrar e têm produzido muito.
H. Gente que bate fundo e vai levando. França, Japão, Iugoslávia, China e adjacências. E o dinheiro fica onde? Vem algum pagamento pela mercadoria? Mandam mais picaretas e querem caminhões grandes, grandes. Maiores pra carregar mais minério. Cada  vez mais minério. E o dinheiro fica sabe com quem? Com os praianos. Com os praianos. Viva Minas Gerais que já deu ouro. Agora dá ferro, amanhã vai dar água. Tudo de graça. De gracinha vai dando tudo, pra quem quiser. Terra de ninguém. Terra sem dono. Praiano tá lá, se divertindo dos caipiras das montanhas. De quem é a culpa? Do pecado original. Do pai da empresa. Vai no batistério e veja quem fez o registro de nascimento da Companhia.  Agora, agradece e elogia. Tudo no beira mar.     
C. Tudo no conforto!
A. A vida é esta, dona Hortênsia. Não tem mais solução.
H. Mas eu conheço o meu gado. Terra rica com povo com dinheiro guardado na poupança e depositado pela aposentadoria, pelo que ajudou a entregar, mas pobre, pobre de força, de energia, de coragem. Buraco vazio, cabeça vazia. Cabeça cheia mesmo é de ilusão. Ilusão, de enganação, de aceitação.
A. Mas a Companhia dá emprego pra muita gente.  
C. O Geraldino mesmo conseguiu economizar e comprar o caminhão.
H. O Geraldino trabalhou até a morte, querendo pagar o caminhão. Subia o rio Jirau, todo dia, pra carregar minério pra companhia. Doutor tá lá na beira do mar, olhando as modas, falando de futebol, de mulher e de carnaval o ano inteiro. Festejando as utopias. Pedindo mais, com mensagens alvissareiras de encantar mineiro calado e resignado. Caramujo no seu canto de tristeza e dor.
A. Calma, dona Hortênsia. A senhora sabe que além do INSS, ganhou a pensão de um salário mínimo todo mês.
C. Já dá para  as pequenas despesas.
H. E as grandes? Sou louca, mas não sou burra.
A. Calma, dona Hortênsia. Eu compreendo. A senhora foi professora, teve também a sua vida produtiva. Agora está mais velha. Hoje as coisas são diferentes. Eu gosto da senhora. Todo mundo aqui também. Não podemos deixar a senhora e a Lili sozinhas dentro de casa. Soroco é bom filho e gosta muito da senhora.
C. E gosta muito da Lili também.
Lili – Tu que és rei...
A. Olha... aí vem o Alfeu.
C. Como prefeito ele pode ajudar muito.         
H. Não vou embora, aqui nasci, lutei, trabalhei, construí, e aqui eu quero morrer. Velhice não é doença. Não quero fugir da minha velhice. Ela foi chegando e eu fui aceitando. Por que fugir dela?
  

CENA V
Hortência, Alfeu, Alcione e Carolina, Lili

Alfeu – Bom dia, dona Hortênsia.
A. Ela está meio nervosa, Alfeu.
H. Não sou covarde e não ando fugindo de nada. Não sou poeta pra ficar espiando de longe. Sou peão mesmo. Pego a enxada e corto a minha terra. Não mando recado em versinho rimado. Terra é terra. Asfalto é tintura. O resto é conversa fiada. O Geraldino puxou minério até morrer. Puro peão.
Alfeu – É! os peões estão fazendo a riqueza de Itabira e do Brasil.
H. Riqueza de Itabira? Riqueza do Brasil? Fica o quê pra Minas Gerais. Estrada da morte, estrada que ninguém passa sem chorar, lembrando amigos e parentes que nela morreram. Estrada que ninguém vê. Passa governo nesse país, vem governo pra esse país e a estrada continua parecendo  uma linguiça comprida, tortuosa, montanhosa, estreita, perigosa. O governo quer dinheiro e o povo de Itabira compra carro, mas tem medo da estrada. É de hoje? É de hoje? Geraldino puxou minério do Pico do Cauê, do ponto mais alto. Hoje, tudo na inovação da alta tecnologia. E o povo preso sem estradas.
Alfeu – Dona Hortênsia! Veja bem. A Companhia conseguiu um lugar bonito para vocês morarem. Tem um grande hospital. A Lili vai gostar muito.
A. A gente cuida do Soroco, ou ele vai morar no alojamento da Companhia, como ele quiser.
H. Soroco é frágil como o vento. Só sabe carregar caminhão de minério.
C. Que nada. Ele é forte. Tem muita saúde. É um homem forte e muito bonito, corajoso. Vai sempre visitar a senhora e a Lili. A senhora não precisa levar nada pra Barbacena. Nem roupa. Lá eles dão tudo.
A. Já está na hora de Soroco chegar. Eu tenho algumas coisas pra fazer em casa. Volto mais tarde. Vou indo. 
H. É cedo, dona Alcione. Lembro ainda que mineiro é, antes de tudo um caipira. Tem dialeto caipira. Já caiu no imaginário nacional, pois toda revistinha pornográfica põe o mineiro bancando o caipira nato. Mineiro fica no cantinho da conversa. Não pede, tem vergonha de falar, de pedir, de protestar, de exigir. De exigir. Não exige nada. Aceita tudo. Mineiro é “maria vai com as outras”, conhece esta expressão? “Maria vai com as outras”. Por isso falaram que Minas são várias. São várias minas mesmo, são vários buracos. Se referisse ao estado tinha que dizer Minas são vários. Minas é montanhoso. Entendeu bem?
Alfeu – É muita palhaçada! Tenho que rir.
H. Eu sei que todo louco é, antes de tudo um palhaço pra fazer rir. Riso inconsequente pra encobrir as grandes verdades.
Alfeu – Está mesmo passando dos limites. Se não fosse uma louca eu pegava as testemunhas e abriria um processo contra a senhora por desacato às autoridades constituídas. Em vez de ir para o hospício, iria para a cadeia que é o lugar de gente que perturba a paz da comunidade.
C. Doutor Alfeu, ela verbaliza palavras reprimidas. Não está em juízo perfeito. Rompeu as estruturas formais da mente.
Alfeu – Estou passando por momentos difíceis, mas a câmara já aprovou a verba para a remessa delas para o hospício e tenho ainda o apoio da Companhia.
H. Eu fico imaginando. Queria ficar sempre. Ver outras enchentes de areia preta cobrir as hortas de mangarito. O povo vai sofrer muito mais com essa areia preta descendo pelo rio Jirau, pra cobrir as hortas de Santa Maria. Essas águas, ah! Essas águas! A água está seguindo o mesmo caminho? Agora os magros rios, que desciam cantando pelo seu curso afora, alegrando as montanhas do Minas Gerais, foram engolidos, embarcados nos infinitos tubulões de ferro e sugados para o mar, transportando o quê. Adivinhe! Transportando o quê? As águas foram entubadas, os rios secados, os peixes motos. Adeus cachoeiras despencadas, adeus cascatas, adeus poções de nadar! Concordâncias, concordâncias, concordâncias pra tudo levar. Um sorriso mais audaz agradece e satisfaz. E quantos litros de água vão levar por hora? Quem vendeu? Quem comprou? O rio é de quem? Vai ter que pagar alguma miserinha qualquer. O rio tem preço? Quanto custa cada bica de água? Posso falar mais?    
Alfeu – Isto não tem sentido. Está passando dos limites. O que a senhora tem com isso. Quem encomendou esse discurso insosso, desnecessário, agressivo. Não sabe de nada, não mede consequências. Prejudica as grandes negociações, grandes empreendimentos. Impossível conviver com pessoas assim nesta municipalidade. Está ganhando o quê, com esta falação desmedida?   
Lili – Tu que és rei...
H. Eu amo esta menina, que vem dentro de um romance, áspera, nítida, úmida, brincar no meu pensamento. Filhinha, pra lá da Oceania, decerto, há outras meninas e outros coqueiros também. Por que não me conta? Eu queria tanto saber. Minha casa é esta. Não tenho doença pra precisar de hospital. Velhice não é doença. Ainda sou povo desta terra que também é minha de coração. Este é o meu lugar. Falo pro meu povo. Ele ouve e gosta. Eu só falo as evidências. Da minha janela, o povo me escuta.
Alfeu – Pior ainda. Povo, como povo, são sempre aberrações inconsequentes.
Pra mim, chega. Não sou obrigado a suportar essas lamúrias de mulher louca. Estou perdendo o meu tempo e me irritando. Tenho certeza de que vamos vencer esta batalha.

CENA VI
Juvenal, Soroco


Juvenal - Outra vez na oficina, Soroco?
Soroco – É isso, Juvenal. Tive que regular o freio.
J. Quantas viagens você já fez?
S. Estou com cinco, mas quero chegar a doze.
J. Hoje não consigo nem oito por dia.
S. Porque você roda devagar, sempre no seguro.
J. É. Nessas descidas, a gente tem que se garantir no freio e na embreagem. Tenho filhos pra criar.
S. Eu sei e admiro você. Mas eu tenho de arriscar. A Companhia está pedindo a gente pra produzir mais, pra ela exportar mais. 
J. Admiro. Você tem uma produção e tanto. E por falar nisso, mandaram dizer que precisam falar com você na chefia, hoje de tarde.
S. Até. Ah! Espera um pouco, xará? Sabe qual é o assunto da chefia?
J. Acho que vão te propor alguma ajuda.
S. Desembucha, cara!
J. Aguenta firme! Estão querendo levar a dona Hortênsia e a Lili para um hospício.
S. Mas isto é questão de família. A Companhia não tem o direito de botar a mão no que não é dela.
J. É por causa disso mesmo que o Serviço Social pediu à chefia pra conversar com você. Amaciar. Eles então querem prestar uma ajuda pra você ficar devendo o resto da vida.
S. Estou acompanhando o fio do seu pensamento. Admiro a sua competência.
J. Não tem nada, não. Estou só abrindo os seus olhos.
S. Compreendo. E o quê é que você acha que eu devo fazer?
J. Pensar. Depois, decidir. Muita calma, muita prudência. Eu respeito e acompanho. Conta com a gente. 
S. Até. Vou nessa, agora.


CENA VII
Hortênsia

Hortênsia – Eu sei que tem muita gente me escutando por aí, querendo me ouvir. Eu falo porque sei e porque tenho obrigação de falar. Vocês estão carregando a riqueza de Itabira. Estão arrancando o que não plantaram. A natureza deixou na terra e agora vocês botam em cima do caminhão, botam em cima do trem de ferro e fazem a entrega. Com picareta na mão cheia de calos, debruçados no volante desses caminhões pesados, dessas escavadeiras, carregam e descarregam. Carregam e descarregam. Um dia, vocês vão pedir. Quem dá demais, um dia acaba pedindo. Estão dando o que não é de vocês. Olha bem! Um dia o minério vai acabar. Aí, eu quero ver. Ficou o quê pra Itabira? Buraco? E as fotografias do presépio? Quero ver? Quero ver? Cai fora dessa, gente. Cai fora!


CENA VIII
Soroco, Chefe

Soroco – Mandou recado pra mim, chefe? Já completei o dia. Doze viagens. Isso dá um navio ou pelo menos um vagão do trem de ferro.
Chefe – Conheço sua produção. A Companhia está muito satisfeita com você e com seu trabalho.
S. Que é que isso, chefe. Só faço o possível.
Chefe. Pois é. Dentro dessas considerações é que eu preciso te fazer uma proposta.
S. Tudo bem! E qual é a proposta?
Chefe – A Companhia está oferecendo lugar pra você no alojamento em Itabira. Pode começar a rodar mais cedo e quem sabe, chegar até a quinze viagens por dia. Não é uma boa?
S. Corta essa, chefe. Não posso, não.
Chefe – Qual é a sua, Soroco? Vai ser bom pra você.
S. Não posso, não. Tenho compromisso diário. Eu admiro e agradeço a intenção da Companhia, mas não vai dar, não.
Chefe – Esse pessoal é assim mesmo. 
S. Não é isso não, chefe. Tenho compromissos firmes, uai.
Chefe – Deixa disso, Soroco. Não fica bem você rejeitar. Estão querendo até alugar a sua casa pra te ajudar. Aumentar os seus rendimentos. Precisam de moradias. É gente fina que está chegando. Tudo por conta da Companhia.
S. Que é isso, chefe. Não tem nem papo sobre o assunto.
Chefe – Pensa bem! Vai dar pra fazer umas economias. A Companhia vai cuidar de tudo pra você. Suas referências são as melhores. Sua folha de trabalho é limpa. Só que você influencia muito os motoristas. Mesmo assim, a Companhia arranjou tudo direitinho.
S. Os meus compromissos são meus. Eu assumo.
Chefe – Eu sei quais são os seus compromissos. Sua mãe e sua filha, não é verdade?
S. Certo. E eu preciso cuidar delas, uai.
Chefe – Elas vão ficar internadas sem você gastar nada.
S. Eu preciso delas, também. Sem elas, eu perco a vontade de trabalhar.
Chefe – Precisa é se desligar. Todo mundo aqui quer te ajudar pra te tirar dessa, rapaz. Sua mãe está sendo um peso pra você. É um peso que você está tendo que carregar. Eu sei como pesa esse peso. É muita responsabilidade pra uma pessoa só.
S. Precisa, não, chefe. Muito obrigado. Precisa, não. 
Chefe – Mas já está tudo combinado na Companhia. O Serviço Social já providenciou o hospital. Sua mãe está criando muito problema.
S. Ela está meio doente, mesmo. Mas é só em casa que ela vai conseguir alguma melhoria.
Chefe – Nada disso, Soroco. Somos amigos e acho que você está sendo egoísta. Ela precisa de tratamento. E a sua filha muito mais ainda.
S. Pode ser. Mas elas vão continuar em casa. Não preciso de intrometimento da Companhia. Se precisar, eu peço. Até amanhã, chefe.


CENA IX
Dona Rosa (apresentando). Doutora Marta, Diretora de Relações Industriais da Companhia, prefeito Alfeu, doutor Lélio.

Dona Rosa – Licença, Dra. Marta! Está aí o prefeito de Santa Maria de Itabira, dr. Alfeu Alves Tavares.
Doutora Marta – Ah, sim, o nosso prefeito. Que prazer em recebê-lo.  
Alfeu – Como vai, Dra Marta? Este é o engenheiro, doutor Lélio, nosso secretário. Estamos trabalhando incansavelmente pelo nosso município. Muito trabalho, muito esforço, mas com bons resultados.
Dra Marta - Ah, sim. É um belo trabalho. Acompanho sempre de perto. Pois é, doutor Alfeu. Ouve-se por aí que o senhor é o melhor prefeito que o município já teve. Muitas obras, apoio popular com sólida base política, base segura. Futuro promissor.
Alfeu – Bondade sua. Os meus correligionários e companheiros é que têm garantido a minha situação. Eles me obrigaram a assumir o cargo. É um sacrifício colocado nas minhas mãos pelo destino. Tenho que cumprir.
DM – Com a sua habilidade política e administrativa não será difícil. São habilidades natas. O senhor as possui pelas informações que tive a seu respeito. O senhor é seguro, firme, ambicioso, não?
Alfeu – Não posso negar. Eu compreendo o meu destino.
DM. – Pois é isso. E nós na Companhia estamos prontos para colaborar com a sua administração em benefício dos municípios vizinhos a Itabira, sua microrregião.  E porque, não? Prontos também para uma colaboração muito estreita às suas futuras pretensões.
Alfeu – Agradeço sensibilizado. Da mesma forma, coloco a prefeitura de Santa Maria de Itabira à disposição da Companhia para o que der e vier. Não é doutor Lélio?
Doutor Lélio – Colaboração e apoio irrestritos.
DM. – Tínhamos a certeza disso. Neste momento, solicitei a sua presença para discutirmos dois assuntos. O primeiro: estamos precisando de algumas moradias. A Companhia pretende alugar por um preço um pouco acima do mercado. Como o senhor sabe, o nosso projeto de construções para o pessoal está com o cronograma em atraso.
Alfeu – Perfeitamente. Eu compreendo.
DM – Bom. Quanto ao segundo problema, queríamos que o senhor tivesse uma atuação mais decisiva para a conclusão de um trabalho do Serviço Social. É sobre um motorista que tem muita influência sobre os colegas. Todo o transporte por caminhões é terceirizado, como o senhor sabe. São independentes, mas precisamos segurança nesse transporte.  Queríamos podar essa influência de lideranças desagradáveis que vêm surgindo. Os motoristas são facilmente influenciáveis por quaisquer motivos. Gente simples, até um pouco primitiva.  Antes ajudar do que imaginar turbulências ou punições, o senhor compreende? Uma pequena chama é início de uma fogueira. Nossa Companhia nunca teve uma greve, mas pequenas insatisfações podem gerar depredação ou sabotagem voluntárias ou vandalismo, mesmo.
Alfeu – Compreendo.
DM. – Pois é. Queremos proporcionar-lhe melhores condições de vida e de assistência aos familiares desses transportadores de minério para que eles não venham a se insurgir contra a Companhia. Além disso, essa responsabilidade não cabe à Companhia. São ações preventivas, apenas.
Alfeu – Compreendo. Penso que se trata do Soroco? Ele realmente é uma pessoa simples, mas que tem carisma que não sei de onde nasce. Parece um grande retardado, brutamonte, fala pouco, muito lento, mas sei que é carismático, mesmo. Coisas que nem entendo o porquê. Tem um físico que atrai, pode ser isso.
Dr. Lélio - Soroco? 
DM. – É um nome como este, Soroco!
Doutor Lélio – Soroco!
DM – Isso. Se houver benefícios adicionais ele fica impossibilitado de agir contra a Companhia. E não queremos cortá-lo de nossos serviços, por enquanto. Se essa influência continuar, não teremos outra alternativa. Sabemos que isso pode nos trazer turbulência passageira.   
Alfeu – Muito correto.
DM – O senhor sabe como são estas coisas. Queria a sua colaboração. Serviços indiretos, tudo por conta da Companhia. Até dinheiro se precisar. Sem recibo. Tenho certeza da sua colaboração sempre discreta.
Alfeu – Total e desinteressada, doutora.
DM – Eu tinha a certeza disso.
Alfeu – Ah! Doutora Marta! Tínhamos solicitado à Companhia estudos para a instalação de algumas pequenas indústrias no município. A senhora tem alguma informação?
DM – Gostaria de ter. Entretanto, estas providências estão afetas a outro setor com decisões de diretoria. O senhor sabe, são decisões que se originam no Rio de Janeiro. Quando chegarem até a minha Diretoria, terei o máximo prazer em fazer as devidas comunicações. Em princípio informo que decisões do Rio de Janeiro indicam ou não aconselham abrir outras frentes de trabalho na microrregião para não interferir no processo de contratação de mão de obra para a empresa. Esta é uma informação confidencial. Por hoje, agradeço a sua presença. Passe bem! Sucesso no seu município.
Alfeu – Agradeço. Sempre às ordens da Companhia. Às suas ordens. Passe bem.

CENA X
Motorista, Madame Del Rio, Hotênsia

Motorista – Esta é a casa indicada, Madame!
Madame Del Rio – Sem qualificação. Acabamento de terceira. Não consigo imaginar como se pode morar aqui, meu Deus.
Motorista – É. É ou parece uma construção de segunda categoria.
Hortência – Estou com visita nova? Acho que eu não conheço a senhora.
MR – Sou madame Del Rio.
H. – A senhora é uma mulher muito bonita.
MR – Obrigada.
H – A senhora é de Itabira?
MR – Deus me livre. Sou da beira mar, do Rio. Sou alérgica a poeira e a mau odor. Além de tudo, poeira preta. Meu marido está colaborando com a Companhia e eu sofrendo nestes buracos perdidos no tempo e no espaço. Detesto esta tal de Itabira.
H – Então a senhora vai gostar daqui, desta cidade. Aqui, as pessoas são muito boas. Ajudam a todo mundo.
MR – Ajudar com quê? O povo está caindo de pobreza. Isto é ridículo.
H – E a senhora? Do que é que a senhora está precisando? Às vezes, eu posso ajudar.
MR – Será? Vim aqui ver esta casa, que me foi oferecida. Mas não estou gostando. Pra mim, não dispõe das mínimas condições de habitabilidade.
H – Então a Companhia mandou a senhora vir ver a minha casa?
MR – É. E disseram que a senhora vai para o hospício de Barbacena com a sua neta. Um hospício ou manicômio... ou coisa assim.
H – Não pode ser verdade!
MR – Eu não me interesso por esses detalhes. Só vim ver a casa.
H – Mas a Companhia não tem direito sobre ela. Soroco, meu Deus!  Será que isso pode ser verdade? Foi o Geraldino mesmo que construiu com todo o sacrifício. Ela não pertence à Companhia.
MR – Estes detalhes não me interessam. Vou autorizar a Companhia a efetuar uma reforma substancial e de urgência… Alterações estruturais.
Ambiente colonial pode ficar bem. Gostei deste relógio de parede. Pode se ajustar o estilo da casa aos móveis. Fica engraçado, tecnicamente.
H – Entendi muito bem. A Companhia já tirou tudo que o Geraldino tinha. A  a saúde, a força, a energia, a vida. Está fazendo a mesma coisa com o Soroco e com os outros peões. Com a cidade e com as cidades vizinhas. Com a reserva de ferro, de ouro e de tantos outros minerais. É só fazer os buracos e mandar as pedras para o Japão, pra China, ou sei lá pra onde.
MR – Não quero falar de política.
H – Porque a senhora e seu marido estão mamando muito no tranquilo. Chega aqui, toda florisbela, e fica botando defeito em tudo. A Companhia encheu Itabira de peões. Mas emprego para os jovens não existe. O quê é que os filhos dos peões vão fazer?
MR – Filho de peão, peão vai ser. Há alguma novidade nisso?
H – Não há, porque o dinheiro evapora, corrompe e dissolve na maresia. A natureza deu e a Companhia carregou.  Ficaram os buracos no solo e as crateras no coração. Este é o resultado.
MR. Olha, estes assuntos não me interessam. Cuido de mim e das minhas coisas. O resto que se dane. O meu motorista está me esperando. Adeus. Da próxima vez que eu voltar aqui, a senhora já deve estar longe. Pra doida está ainda muito ignorante e mal agradecida. Só acho que em vez de mandar as duas para hospício deviam mandá-las é pra cadeia. Gentinha irreverente. Mulher grosseira. Sem tratos sociais. Tratando-me desse jeito em sua própria casa. É esta a tradicional hospitalidade mineira.


CENA XI
Dr. Lélio, Alfeu, Soroco

Doutor Lélio – Soroco, nós estamos querendo te ajudar. Você está trabalhando demais. O dia inteiro puxando minério. Chega em casa e ainda encontra coisas pra fazer. Sua mãe está cansada, sua filha doente.
Alfeu – Minha mulher tem ajudado e outras pessoas também. O povo todo ajuda com muita satisfação. Mas elas precisam se tratar numa clínica especializada. Estão muito doentes.
S. Mas elas não estão muito doentes!
Alfeu – Claro que estão, Soroco.
D L – Claro, Soroco, elas estão precisando de tratamento especializado que não existe nesta cidade. Sua mãe está fora de juízo, psicopata, falando e gritando para todos os lados, agredindo. Sua filha é esquizofrênica. Existem clínicas especializadas. Ela pode melhorar alguma coisa. Nunca será uma mulher normal, de convivência e trabalho. Pode melhorar um pouco.
Alfeu – Você é bom filho e bom pai. Mas tem a sua vida, seus compromissos, seu trabalho. Precisa produzir.
D L – Nós não queremos deixar você em situação difícil, com duas pessoas doentes em casa. Arranjamos um lugar pra elas num hospital em Barbacena. Lá, a Companhia tem convênios. Tudo no conforto e no tratamento de graça.
Soroco – Eu sei.
Alfeu – Ninguém precisa pagar nada. Nunca. Isto será impagável. A Companhia, com seus grandes objetivos internacionais, com centenas ou milhares de funcionários ainda se preocupa com a família de um simples terceirizado, morador em Santa Maria de Itabira. Temos que nos reverenciar por esse ato de compaixão.
DL – Neste ponto, a gente tem que reconhecer. O seguro da Companhia garante a situação. Transporte, alimentação, medicamentos, vestuário e tudo mais que for necessário para o tratamento delas.
Soroco – Mas elas ficando aqui, mesmo doentes, vão sofrer menos. 
Alfeu – Mas aqui elas não têm condições de recuperação. Lá tudo será diferente. Tempos modernos com as novas descobertas no campo da medicina, talvez possam melhorar. Talvez possam até se curar.
Soroco – Talvez, doutor?
Alfeu – Claro. Como é que a gente vai saber. O ser humano esconde mistérios insondáveis. Há os exames, há o diagnóstico e há a medicação exata para a doença delas. Os mistérios da alma humana.  
Soroco – Se fosse a mãe do senhor e a sua filha, o senhor mandava elas para o hospício de Barbacena, doutor Alfeu?
Alfeu – Nas mesmas condições...
Soroco – Mandava, doutor?
Alfeu – Ah! A gente está se preocupando por vocês e você está pensando que nós estamos querendo judiar delas. Incrível isso! Não é assim. Nada disso. Estou ficando cansado. Estou sendo educado e paciente demais com vocês.
D L – Veja se compreende, Soroco! É para o bem delas. Você está passando dos limites. Você não tem que decidir nada, apenas concordar. É o mínimo e não cair nenhum remorso sobre você pela concordância. Simples concordância. Elas não têm condições de decidir nada, pelo estado em estão.  
Alfeu – Uma vez por mês você pega seu caminhão e vai fazer uma visita lá no hospício. Vai ser até um passeio para você.   
D L – Está vendo como são as coisas? Aliás, uma empresa grande precisa cuidar bem do seu pessoal para alcançar as metas previstas, mesmo sendo pessoas simples e que não fazem falta ao desenvolvimento e ao crescimento da Companhia.
Soroco – E eu não tenho conseguido ajudar no crescimento da Companhia?
Alfeu – Você está fazendo o que pode. O peso da casa e do trabalho não é pra qualquer um suportar. A Companhia entra como suporte social, apenas. A sua casa tem valor para a Companhia, também.
Soroco – Mas a minha casa não interfere.
D L – Mas há uma relação. O Serviço Social da Companhia verificou que a sua produção se alterou. Sabe o quanto vai representar uma viagem a mais para o trem carregado de minério de Itabira para Vitória?
Alfeu – A estrada de ferro vai atingir novas metas.  São ferrodólares canalizados para o país. E o nosso produto vai para o mundo inteiro. Você devia se orgulhar disso.
Soroco – Eu fico orgulhoso, sim, doutor. A gente não vai entregar os pontos. Sei que o Brasil precisa do esforço de cada um.  
Alfeu – A Companhia reconhece.
D L – É isso aí, amigo! Vamos ser amigos de quem pode.
Soroco – Eu sempre fui amigo dos meus amigos. Gente que eu conheço. Mas não conheço nenhum diretor da Companhia.
D L – Você é um motorista de caminhão e um Diretor da Companhia não pode ficar conhecendo todo motorista de caminhão. São quantos? Imagine.
Você conhece e se relaciona com todas as pessoas. Você participa da vida dos outros e eles te ajudam nas dificuldades. Mas isto é aqui, nesta cidadezinha.  Você se sacrifica muitas vezes pelos amigos, eu sei. Sei que você já ajudou muita gente neste caminhão velho. Fez mudança, carregou areia, pedra e tijolo sem cobrar nada. Já trabalhou de pedreiro até nos domingos, em mutirão. Na construção da nova Matriz você recebeu nosso agradecimento pela sua participação nos trabalhos. A igreja foi construída pelo povo. Com as mãos do povo. Pelos estudantes e pelos peões. Isto é uma glória, Soroco. Você não se preocupa com dinheiro. Construiu um barraco inteiro pro João Tolentino na ocasião da enchente. Trabalha pra qualquer um, por nada. Mas isso é aqui, na cidadezinha.
Alfeu – Isto já é uma loucura.
Soroco – Mas, Deus há de ajudar!
Alfeu – Bom. Então estamos combinados. Na hora certa, uma ambulância vem buscar as duas enfermas. Nada de preocupações e sentimentalismos. Você é forte e pode compreender isto muito bem.
Soroco – Eu me arranjo. Eu sei. Eu me arranjo.


CENA XII
Auxiliar do delegado, delegado

Auxiliar do Delegado – Está aí aquele cara que o senhor mandou chamar, doutor.
Delegado – Mas já?
AD – Parece que é perigoso, doutor. Chegou e foi entrando sem pedir licença nem dar bom dia.  No peito.
Delegado – Logo pra cima de mim?
A D – Vai ser complicado esse caso, doutor?
Delegado – Pra mim, não tem caso complicado. Não gosto de atender pedido de gente grande, importante. Eles vêm com muita pompa, exigem muito, depois dão uns presentinhos pra compensar. E sempre por cima dos peões.
A D – Eu já percebi isso. Tem muito peão criando caso.
Delegado – Casinhos. Casinhos, mas eu sei fazer as coisas, pô! Manda esse peão entrar de uma vez. Espero que ele não vá me encher mais o saco. Vai!


CENA XIII
Soroco, delegado

Soroco – Dá licença, doutor?
Delegado – Cara, você já entrou!
Soroco – Desculpe, delegado. Vim porque o senhor mandou me chamar com urgência.
Delegado – Claro, tem muita gente reclamando. E eu tenho que me preocupar com a tranquilidade do município. A sua mãe está doida varrida. Sua filha é biruta de todo. A sua casa está uma zona. Quero providências, pô. Quero que esvazie aquela casa porque a Companhia precisa dela.  E pra terminar, está falado.
Soroco – Não consigo entender, doutor.
Delegado – Haja saco. Quero que vocês desocupem aquela casa, se mudem. As providências são suas, rapaz.  Se, não, eu tenho que tomar as minhas. Entendeu agora?
Soroco – A casa é nossa, com registro e tudo. A Companhia não pode desfazer isso, e nem mandar na pessoa do Delegado.
Delegado – Qual é a sua, peão?  Ponha-se no seu lugar. Eu posso montar um processo contra você por crime de calúnia e desrespeito à autoridade. E não vai ter mais empreguinho de volante de minério, não. Se piar, a Companhia vai ficar sabendo o que você anda dizendo por aqui.
Soroco – Eu só falo as evidências... A casa não é da Companhia, doutor.
Delegado – Mas a Companhia está precisando dela, e daí? E se você quiser ver o barco virar, vai ver ele afundar mesmo. Olha que neste rio você nunca nadou. Vai pegar muita água, peão. E pode se retirar que a minha missão está cumprida. Eu não sou de ferro. Falaram que o trabalho nesta Delegacia era mole. Mas eu só entro em buraco quente, pô, e tenho que me irritar todo dia. Vai, pode sair! Parece retardado. E vê se não me aparece mais. Assina o documento de presença com o Auxiliar e pode cair fora.
Soroco – Mas eu não entendo, doutor.
Delegado – E é pra entender? Metido a bom de sela, mas é cheio de trapalhadas. Sua mãe e sua filha estão dando o que falar nesta cidade. Pode ir e tome as suas providências porque eu vou tomar as minas. Pode ir.

CENA XIV
Alcione, Alfeu

Alcione – Cansado?
Alfeu – Cansado é pouco. Tive que usar toda a minha capacidade mental para convencer o Soroco. É um cara embotado, mas não é burro.  A Prefeitura quer ajudá-lo e ele acha que é perseguição política.
Alcione – Mas ele falou isso?
Alfeu – Não, mas ficou olhando de lado.
Alcione – Coitado do Soroco, tão bom, tão prestativo.
Alfeu – Olha aí, até você já está do lado dele.
Alcione – Gente humilde. A família do Soroco precisa de ajuda. Quero ajudá-lo como pessoa humana. Como esposa do prefeito. Tenho direito e obrigação de fazer isso.
Alfeu – Estou entendendo. Está na linha do Soroco. Vê se entende que existe algo mais. Pode-se capitalizar prestígio político, tanto na Companhia, como entre os correligionários. Preciso ajudar a Companhia. O município precisa.
Alcione – Em troca de quê?
Alfeu – Não é em troca. É ajuda pura e simples. Precisamos  ajudar o Soroco e a Companhia tem interesse nisso. O que ela está pretendendo não é da nossa conta.
Alcione  - A Companhia está protegendo demais os peões, você não acha?
Alfeu – A Companhia é uma mãe pra eles. Itabira está cheia de peões em boa situação financeira, com casa, carro na garagem, dinheiro na poupança.
Alcione – Essas coisas são deles porque trabalharam e trabalham.
Alfeu – Você não enxerga futuro. Quem tem a Companhia na mão não morre pobre. Este é o meu princípio, a minha meta. Mais o quê?


CENA XV
Chefe, Amir, Juvenal, Soroco, Lucas, Rosemiro, Bruno


Chefe - Outra vez na oficina, Soroco?
Soroco – Vim regular o freio, outra vez. Essas descidas desembestadas estão forçando muito a caixa de marcha. Pra rematar, o silencioso está furado.
A. Aproveita aí e faça uma revisão no motor também.
J. Se você vai morar com a gente no alojamento, vê se dá uma boa guaribada no cano de descarga.
S. Ainda não decidi se vou mesmo pro alojamento.
J. Fica tranquilo que a turma do trinta e dois é a melhor da Companhia.
L. O pessoal te respeita e te admira muito. O que você faz a gente acompanha porque sabe da sua competência.
S. Eu agradeço. Não acreditava no contrário.
R. Amanhã te esperamos no alojamento. .
A. No domingo eu passo na sua casa, em Santa Maria. Acho que podemos te ajudar em muita coisa.
S. Claro que podem e eu agradeço. O prefeito acha que a mãe e a Lili têm que ir mesmo para hospício de Barbacena. Fico pensando e fico sofrendo. Meu coração não permite. A verdade da doença pode ser mais forte do que meu coração de pai e filho. Eu adoro a minha mãe e a minha filha em qualquer situação, mesmo doentes. Elas fazem parte de mim, da minha vida, até do meu sofrimento.      
L. A mãe é sua, a filha também. Mas eu respeito e admiro o que você decidir.
S. Não sei o que fazer, nem nada. O prefeito providenciou a ambulância pra levar as duas para o hospício. Domingo de manhã vai ser a nossa despedida. Eu fico só. Sem problema. Dizem que vai ser para o bem delas, mas eu acredito em maldades. Como é que eu posso concordar com isso se a mãe chora e a filha canta perdida no espaço?   
B. Compreendo. Você tem direito de ser como é até quando achar conveniente. A única coisa viva é a sua palavra.
J. Conta com a gente. Estamos aí prontos pra prender o delegado se for preciso. Tudo depende da sua decisão.
A. Eu entro com o caminhão e tudo dentro da casa do prefeito e arrebento de uma vez.
S. Não vai resolver. Já pensei muito em violência. Não está no meu feitio. Não tem outro meio. Estou numa encruzilhada. Sofro demais com esse movimento todo de apoio e de agressões.
L. É um tal de agir sem poder reagir.
S. Não preocupa, não. Se forem lá em casa, no domingo, eu agradeço.
J. Deixa comigo.
A. Até a próxima .
R. Domingo a gente vai lá sem falta.
J. Vamos em grupo, para o que der e vier.
R. Nós vamos preparados para endurecer o jogo ou sair do campeonato.
L. Até domingo, irmão. Companheiro é pra isso mesmo.
Todos - Até, até, até.


CENA XVI
Chefe, Juvenal, Rosemiro, Amir,

Chefe – Juvenal, me conta, sem rodeios, que transa é esta que a Companhia está fazendo com o Soroco?
J. Mas você não está sabendo? Você sabe o estado da mãe e da filha dele?
R. Pois é. A Companhia está querendo mandar elas pro hospício de Barbacena.
Chefe – Até aí, nada demais. Qual o problema?
J. Nada demais, Chefe? Acontece que o Soroco sabe que mandar alguém pra Barbacena desse jeito é mandar pra morte, direto. Lá no hospital, ou no hospício se não tem cura, eles dão o chá da meia noite.
A. E é ele mesmo que tem que decidir. As doentes são dele.
J. É isso aí!. É por aí mesmo.
Chefe – Então tem que ser como ele achar.
J. Mas a Companhia quer forçar a situação. Arranjou lugar no alojamento, as vagas no hospital, alugou a casa dele e no domingo de manhã vai levar as doentes.
Chefe – Que é que você está achando disto tudo?
J. O delegado mandou chamar o Soroco e falou pra ele sumir com as doentes de Santa Maria.
J.  Tem mais. O prefeito está forçando a barra pro Soroco achar isto muito bom, dizendo que ele é o culpado de tudo, que ele está sendo egoísta, sem capacidade pra decidir nada. Um moleirão.    
Chefe - Ele sabe passar a conversa. Eu conheço a fama dele. Leva qualquer um na enrolação. E a Companhia?
J. Eles dizem que não têm nada com a história. Com isto, vem o projeto da produtividade. Aquele negócio de só uma viagem a mais por dia, para a entrada de mais ferrodólares no país ou no bolso da Companhia.
Chefe – E o povo da cidade?
R. O pessoal de Santa Maria está escutando calado.
Chefe – É. A coisa está meio diferente do que o pessoal está pensando na oficina. Os companheiros precisam ficar sabendo da verdade.
R. Domingo cedo nós vamos encher as ruas de Santa Maria de caminhão.
J. Acho que a gente tem que esclarecer o pessoal.
R. Pois é. Alguns mais exaltados querem invadir a casa do Soroco pra não deixar ninguém sair. Eu acho certo ir até lá. Vamos mostrar a nossa força.
J. É. Mas o próprio Soroco já está achando que elas devem ir mesmo. O coitado vai sofrer mais porque não vai ter mais ninguém.
R. Precisamos falar com o Lucas, já. Ele estava em Santa Maria, arranjando um plantão.
J. É isto mesmo. A gente precisa telefonar pra ele com urgência, para as coisas darem certo no domingo.
R. Ele já chamou os motoristas. Está todo mundo no aguardo das ordens dele. Preciso falar com ele rápido.
J. Ele já deve estar agora no restaurante da Companhia. Está na hora do almoço dele.


CENA XVII
Rosemiro ao telefone

Rosemiro -  Chama ele pra mim, meu chapa!  É papo de urgência.  // Lucas, tudo nos conformes?  // É. E é sobre isso. // Como é que está o comboio? // Pô. Só de poeira vai dar uma tonelada?   // É isso. O Soroco merece. Quem não tem mãe consola com motorista de caminhão. Isso. É um caso de família. // Certo. Tem muito caminho de cobra criada nesse caso. // Certo. Você não dorme no ponto, xará...// Pois é... O Soroco já até acha que não deve impedir a ida delas. Acha que elas estão doentes mesmo.// É. Ele fica na pior // Ele concordou com a ida delas. Vão partir de madrugada e nós vamos pra dar apoio pro Soroco. Sei, o pessoal vai assim mesmo? // Quantos? // Todo mundo? // Ô ô...vai ser de arrasar. Nós é fogo, companheiro // Vai encher a cidade, rapaz. O prefeito vai ficar doidão //  É... é isso. O Soroco vai ficar satisfeito com a turma do volante junto dele. O prefeito e a Companhia vão ficar sabendo que o Soroco é gente, também. // O quê? Vai dar uma soprada de freio a bafo na bunda do prefeito? Quê, que é isso, xará. E as buzinas? Tudo afinado? // O que você fala é ordem, compadre. Então é isso. Amanhã, às sete horas, a gente se reúne na saída do Campestre // Certo, sem erro. Quando a gente chegar a casa já está vazia e Soroco deve estar só. Pelo menos fica o nosso abraço. Encontramos lá.      


CENA XVIII
Soroco, Hotensia, Lili

Soroco – Mãe, a gente precisa arrumar a sua mala.
Hortênsia – A minha e a da Lili. Já sei que não vamos voltar nunca mais.
S. Não é isso, mãe.
H. É isso, sim! Deixo a casa, o filho, as coisas, tudo! Deixo até o meu atestado de óbito assinado.
Lili – Qual resplende em manhãs purpurinas/ o sublime clarão do arrebol/ e das plagas formosas de Minas/ o Brasil para a glória conduz. / Tu que és rei e que os povos dominas/ ergue aqui teu trono, Jesus. 
H – A minha vida já está vivida e o resto já chegando. E você, meu filho, fica com quem? Você pensa que não precisa mais de proteção? Você é só. Não sabe fazer nada além de sentar do volante do caminhão.
S. Eu posso me ajustar, mãe.
H. Pode sim. Tem que cumprir o que eles falam ou mandam dizer. Você tem que fazer tudo. Seguir em frente. Na vida não existe retorno, nem passagem de volta.
S. Eles só estão querendo ajudar, mãe.
H. Eu sei. Eu sei também o que você não sabe. Você tem muita coisa pra aprender ainda nesta vida. Acredita em todo o mundo.
S. As coisas um dia vão melhorar.
H. Você é mesmo como o Geraldino. Fica olhando de lado. Você também é de pedra, Soroco. De pedra de ferro. A Companhia vai te levar. Ela está colhendo minério que não plantou e vai acabar te colhendo também. Eu não sofro por mim. Conheço seu coração. Você é menino, ainda. Sozinho no mundo. Agora, só esta noite. Nós, juntos, nunca mais. Deste jeito, nesta casa, nunca mais. Eu sei. Esta é a minha agonia premeditada. Conheço o seu coração de bondade e de amor infinito pela sua mãe louca e pela sua filha perdida no espaço. Por isso sofro por você. Você só. Por quanto tempo vai suportar? Nunca uma mãe abandona um filho nas piores situações. Sofro isso também, meu filho amado.  
S. A senhora sabe que agora é preciso arrumar tudo. As roupas, as malas, as merendas pra viagem. Amanhã, na hora da saída, não vai ter que esperar.
H. É preciso. É lei. É mesmo que o Geraldino. Falou, é uma vez só. Palavra de ferro. Fica a única coisa que é minha: Soroco. O resto são lembranças e figuras. Lembranças das igrejas, dos altares e das flores. Eram flores de horta. As plantas do jardim também vão me dizer adeus. Os rios, as montanhas.
S. Eu vou sentir sua falta, mãe. Muita falta.
Lili – Qual resplende em manhãs purpurinas...
H – Lili verdadeira.
Lili – Tu que és rei e que os povos dominas...
H. Não calques o jardim, nem assustes os pássaros. Uns e outros pertencem aos mortos. Não bebas da fonte, nem toques nos altares. Todas estas são prendas dos mortos. Nem nos azulejos, nem no ouro da talha.   
S. Eu fico com as saudades, mãe, esperando a sua volta. Eu arranjo tudo. Em breve, a gente se encontra, outra vez. Descansa e dorme enquanto eu acabo.


CENA XIX
Juvenal, Rosemiro, Lucas, Chefe

Juvenal -  Oi, Lucas!
R. Chegando apressado, meu chapa?
L. Três homens agachados debaixo de um caminhão.
Chefe – Regulando os freios traseiros dos meninos, outra vez.
L. É claro. Estão agarrados nos freios, o dia inteiro. Fica todo mundo borrando na descida do Cauê. Eles deviam é pisar mais no acelerador. Estão trabalhando de cortesia.
R. Pô, cara. Você veio atirando pra todo lado, compadre.
J. O menino veio quente, o quê é que há?
Chefe – Deixa eu ir buscar uma chave de fenda na oficina, enquanto vocês conversam.
L. Fica aí, chefe. A farofa vai espalhar pro seu lado também.
R. Tá com as mãos cheias de pedra, né cara?
L. Fica frio. Estou puto com as transas que vocês arranjaram pra prejudicar o Soroco. Vocês estão trabalhando de cortesia pra Companhia. O chefe até que ganha pra ser testa de ferro. Mas, vocês, não. Colaboram com satisfação.
R. Qual é a sua, Lucas? O Soroco concordou em mandar a mãe dele pra Barbacena. Se ele decidiu, temos que concordar com ele.
R. É, cara.  Ele acha que não tem outra solução.
L. Não tem porque só apresentaram uma pra ele. Soroco é curto. Aceita arreio ou cangalha. Vocês estão ajudando a ferrar o homem. Ele foi forçado a aceitar as imposições que vinham de todo lado. Nenhuma ajuda nós demos, pra ele optar. Fica claro que foi covardia da nossa parte. Ninguém fez nada e agora vêm as consequências dessas desgraças todas. Infelicidade total pro Soroco e nós concordando com tudo. Todo mundo é culpado.
J. Não acredito.
L. Se fosse alertado, ele não iria permitir a remessa da mãe dele pro hospício de Barbacena, como se fosse mercadoria. Sacanagem programada.
J. As doentes são do Soroco, Lucas.
L. São? E eu não sei que são? Os motoristas de Santa Maria estão chamando vocês de bago mole. Merda de gente! Eles vieram me consultar e nós tomamos outra decisão. Tive que decidir.
R. O quê é que você decidiu com eles, Lucas?
L. Seguinte: O Soroco está envolvido por todos os lados. Todo mundo em cima dele, ferrando. Se a gente não botar o pé na estrada e tacar a mão no peito do pessoal da Companhia, o colega pode ser considerado sozinho no mundo. Isto depõe contra nós, que dizemos ser colegas dele, companheiros dele.
R. Isso são águas passadas. Soroco já decidiu. O prefeito venceu. A Companhia venceu. Agora, eu topo abraçar o Soroco no consolo da vida sozinho, na hora da saída das doentes para o nunca mais.
J. Se essa é a decisão, eu altero tudo. Boto pra quebrar.
L. E eu vou ter que presenciar a hora da desgraça do companheiro? Eu fico sozinho nessa estrada?.
Chefe – Não sei se é a melhor decisão.
L. Não precisa se comprometer com a gente, chefe. Você já tem seus compromissos.
Chefe – Eu gosto do Soroco e gosto da turma dos motoristas. Se o caso é esse, eu acompanho. Mas vamos prestar conforto. O resto está decidido.
R. Eu também.
L. O pessoal vai sair e encher as ruas de Santa Maria de caminhão. Vai ser peão sujo de graxa e de poeira pra todo lado.
R. Lucas, eu sabia que você tinha um caminho. Mas agora, tudo acabado.
J. Vamos em frente. Guarda estas merdas de ferramentas, porque já é tempo de preparação. Vamos andando.


CENA XX
Soroco, Hortênsia, Lili, Alcione, Alfeu

Soroco – Vai com Deus, minha mãe, minha Lili, adeus, minha flor. Adeus, eu sei. Nunca, nunca mais.
H. Soroco, meu filho. Nesta madrugada, são lembranças as únicas coisas que figuram no meu coração. Adeus, adeus.
A. Assim, tudo passa na vida. Adeus, amigas e companheiras. Um dia vamos visitar vocês ou voltarão felizes pra nossa cidade. Adeus, adeus.
Alfeu – Finalmente, vencemos esta batalha.

Cena XXI
Soroco, Alcione, Juvenal, Amir, Bruno, Alfeu, Rosemiro, Carolina, chefe, Lucas

Soroco – Vamos entrar, pessoal... A casa é pequena, mas dá pra gente se ajeitar.
A. Deixa que eu arranjo  e preparo um café para o pessoal.
J. Você sabe que os motoristas da Companhia estão aí.
S. Eu agradeço. Vi que as ruas estavam cheias de gente e de caminhões. As duas partiram e eu estou na casa vazia, coração vazio, mas cheio de companheiros. Não estou só. A vida me reserva os amigos.
R. O pessoal quis vir completo pra evitar a partida das suas queridas. Mostrar também pra você, pra Santa Maria e pra Companhia que o Soroco não está ficando sozinho no mundo.
S. Eu agradeço e admiro.
A. O pessoal lá fora está decidido.
B. Querem ver você de qualquer jeito. Saber como você está.
A. Querem você junto deles.
S. Eu vou com muito respeito e consideração.
Chefe. É melhor esperar um pouco.
R. Ele ainda está muito abatido e triste.
Carolina – A emoção pode perturbar o relacionamento dele com o pessoal.
S. Eu gosto dos peões do volante. Vamos esperar o café da dona Alcione. R., você garante pro pessoal que eu estou com eles. Vocês são as minhas escoras na vida. De nobre, nobre não tenho nada, mas encontro o meu caminho.
R. Fica frio, Soroco. Vamos sair e dar um passeio. Pegar um ar mais puro nesta rua cheia de peões. Eles querem te abraçar. Vamos caminhar e ver cada um no seu abraço. Vamos caminhando e cantando.
J. O tempo é passageiro. O vento sopra tudo e leva pro depois.
A. Se acalme, que um dia o amanhã te protege.
Carolina – Acho que o Soroco precisa descansar antes de ver o pessoal.
S. Não tem importância. Não vou cair do cavalo. Já tive catapora e amarelão. Já quebrei o pescoço, já caí no espinho, já fiz tanta besteira, já tive tanto desgosto na vida, que nem dá pra contar sem fazer chorar.
J. Deixa disso. De recordações do passado. Vamos caminhando na rua.
L. Nós estamos no amanhã... No dia de trabalho. Tudo vai correr como antigamente. Freio de mão na reserva, descendo o pico do Cauê. Quinze viagens no dia, irmão, dá pra suar e esquecer. Vamos ganhar o dinheiro da Companhia.
S. As minhas minas acabaram. Só os morros secos do pico do Cauê ficaram. Meus parentes partiram mais cedo. Minha alma é dos escravos, meu sangue está negociado. Minha carne é dos palhaços. Minha fome é das nuvens e eu não tenho outro amor a não ser o dos doidos.
Alcione – O café para todos, feito na hora. Depois, um chá de erva-doce com flores de laranjeira.
Chefe – Isso é bom. A gente tem que conformar e partir para outra melhor.
S. Agora, depois que eu saí da fazenda, já não lembro dos bois pelos nomes determinados. Estou afastado pela tristeza, caminhando para o fim de tudo que já foi grande. Sou resíduo final, adubo. É uma explicação da minha mais singela virtude. Os outros estão caminhando comigo, cá fora e também vieram trazer alegrias pra pendurar nas janelas das casas de Santa Maria, agora protegida, sem perigo. Agora o povo não corre mais perigo. E eu falando em filho pobre e órfão total, neste chão, esgotado.
R. Assim está melhor. A vida continua. O espetáculo não pode parar. O público exige. A sequência da vida que rola. 
L. Nada de pensamentos sombrios.
R. É animar um pouco, é melhor, Soroco. Levantar a cabeça.
J. Nós queremos  te ver alegre e arejado. Um passeio em volta desta praça florida e cheia de amigos.
B. Disposto, pronto para o que der e vier.
A. Topar qualquer parada, como sempre.
S. Compreendo. Me lembro das coisas alegres. A alegria de ouvir a Lili cantar com aquela vozinha, canto de longe, do além. A alma dela estava feliz. Eu queria que a minha alma estivesse com a dela, muito longe daqui. Eu queria estar com ela, cantando aquela ladainha das montanhas de Minas.
Carolina – Tu que és rei...
S. É mesmo, podia ser. Queria cantar com ela.
R. Isso, companheiro. A turma está aqui, para te garantir. Você tem o direito de fazer o que quiser. Os peões querem te ver com alegria. Nada de compromissos. Pode cantar que nós te acompanhamos.
S. Rosemiro, te admiro. Admiro a sua competência. Queria que você conhecesse a Lili. Vivia no espaço, solta como um passarinho de bico vermelho, de asas amarelas, como um pintassilgo. Mas parecia mesmo é como uma andorinha solta. O pensamento dela voava. Entrava e saía em qualquer lugar, na rua, nas casas. Sempre cantando... Tu que és rei e que os povos dominas.  Estou leve, posso movimentar ligeiro, correr desembestado e sem rumo, morro abaixo, entrar no navio com o caminhão e tudo.
R. Assim... A gente quer ver você solto no espaço.
S. Rosemiro, quem é esse pessoal que está aqui na minha casa? 
R. É gente que veio te ver, te ajudar.
S. Compreendo. Compreendo e agradeço. Sempre aprecio o modo como você fala. Tenho um amigo que é assim mesmo. Como é a sua graça, companheiro? Eu acho que já conheço o senhor.
R. Conhece, sim. Os amigos estão aqui pra te garantir e te acompanhar.
S. Estou sentindo o cheiro de óleo de freio queimado. Tem muito vento passando pra trás. É um rio de vento. O verde desse rio é azul e branco. As chuvas já secaram. Na lonjura do azul vejo a lama podre, enchendo os buracos vazios. O ouro puro fica no fundo da bateia. Vai, Hortênsia, cumprir o seu destino! Lili fica no meu pensamento.
R. Foi pressão demais, amigo. Você é homem valente. Agora é menino, é passarinho. Voar é a sua arte. Vai que a gente te acompanha. O comboio está aí. Vamos te seguindo. Puxa a reza. Vai em frente. ... Qual resplende em manhãs purpurinas...
S. Não sou sujeito ruim. Não me olhem assim. Está na hora da colheita. O minério é solidário e se transforma. O senhor é o Diretor da Companhia? Me desculpa porque eu ainda não conhecia. O senhor conhece a ladainha da Lili? Não? Agora, eu estou querendo cantar e não posso. Preciso de ajuda. Canta um pouco, diretor. Sua voz parece com a voz da Lili. Não sei porque que é uma voz que eu conheço e admiro. Começa...canta... canta... eu não sei cantar não... vou só começar. Canta... eu ajudo você...
... QUAL RESPLENDE EM MANHÃS PURPURINAS...
Todos – o sublime clarão do arrebol...
(Soroco canta em tom alto e os companheiros entoam e acompanham o canto, andando ao redor da praça) 
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