terça-feira, 24 de outubro de 2017

O BARROCO – O QUE RESTA

Tornou-se um modelo arcaico e seiscentista. Sintetizando – excesso de enfeites, prejudicando o principal. Dói mais na comunicação oral, incorporado à personalidade.



O mundo foi infectado pelo Barroco. Foi, a partir do Concílio de Trento, realizado entre os anos de 1545 e 1563 e que teve como consequência uma grande reformulação do Catolicismo. O povo era analfabeto e precisava de motivos de visualização dos santos para garantir a fé. As artes, após o Renascimento, teriam pepel importante para o Catolicismo. Era a ordem de Roma. Assim, as imagens dos santos se espalharam comercialmente, com artifícios especiais para confirmar o sofrimento e a santidade das personagens. Chega-se ao sadismo artístico, com lágrimas, sangue, torturas. As peças continham pedras preciosas e ouro. Valiam o quanto pesavam.


O Barroco perdeu terreno mas a tese da visualização tem permanecido no mundo moderno e permaneceu no inconsciente e no comportamento do povo. Belo Horizonte (1897) ao ser edificada, teve a vila de Curral Del Rey, de 150 anos, totalmente destruída para dar lugar a uma cidade moderna. Até as catedrais foram destruídas. A matriz da Boa Viagem foi derrubada na década de vinte, sob protestos. O que restou foi a fazenda que hoje se tornou o Museu Abílio Barreto. Único vestígio.


O que restou? A mentalidade barroca que atravessa os séculos. A comunicação não foi perdoada. Assim, as formas literárias impressas ou orais, estão contaminadas. O poder judiciário é o maior depositário do arcaísmo barroco. Mesmo o Supremo. Retorcido como um cipoal verbal, gestos e esgares, paradas obrigatórias, prolixidade e outras doenças incuráveis. O leitor ou o ouvinte é sempre a principal vítima a ser torturada. Essas idiossincrasias antiquadas afetam o Congresso Nacional, com discursos e falação de políticos inábeis, repetição e gritos desnecessários. Hoje o microfone resolve. Isso, nesse conjunto, tornou a oratória um formato literário decadente e inexpressivo. Quando há discursos, todos se afastam. Há remédios? Os textos longos de suplementos literários estão infestados de cultismo exagerado. Atualizar na semiótica para melhores resultados. Quem não se adapta desaparece. Se alguém está fazendo alguma coisa como sempre fez, alguém está fazendo diferente e melhor. Quem viver, verá.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

ABRIGO DE MENORES DIVINA PROVIDÊNCIA

As duas afilhadas do abrigo foram convidadas a passar um fim de semana com o padrinho Perilo Neto e com a madrinha dona Carolina. Para que elas não se sentissem isoladas ou tímidas nessa visita, foi autorizado a cada uma escolher uma colega para passar o fim de semana fora. Assim, Márcia indicou a colega Maristela, e Joviana trouxe a colega Heleninha.  Formavam um pequeno grupo de amigas usufruindo de um passeio fora da sua comunidade. A alegria dessas meninas era irradiante. Sentiam-se seguras e amparadas por dona Carolina e pelo marido. 


Dona Carolina era previdente e pediu ajuda a Isa, assistente social.
- A Maristela está muito triste. É normal essa tristeza dela. Ela se lembra da mãe e começa a chorar, contagiando as colegas. Elas têm problemas semelhantes de modo que embarcam logo nessa tristeza, puxada pela Maristela.
- Compreendo bem as razões dessas jovens – acrescentou a professora Isa. Vou ficar bem por perto dela para demonstrar claramente a minha intenção de ajudar.
- Isso mesmo. Você percebeu bem a situação. Acompanhe a Maristela especialmente. Ela está muito ressentida e eu mesma fico emocionada com isso. Eu me entrego facilmente aos problemas e aflições dos outros.
- Neste caso, penso que vou poder ajudar. Eu também me entrego demais aos clientes. Profissionalmente é um erro. Eu me envolvo e depois sofro com eles.
A professora Isa se apresentou às meninas, dizendo-se amiga de dona Carolina e que iria com elas no passeio. Cumprimentou uma por uma, perguntando por seu nome e idade. Foi fácil o acolhimento e a integração de dona Isa ao grupo. Quando entraram na van que iria levá-las ao Shopping, Isa procurou discretamente ficar ao lado de Maristela. Assim poderiam manter um pequeno diálogo inicial. Não foi difícil encontrar palavras para iniciar um relacionamento afetivo.
- Você já foi a um shopping, Maristela?
- Nunca. Minha mãe trabalhava o dia inteiro e estava sempre cansada.
Isa não queria assunto “mãe”. Procurou outros caminhos.
- A Márcia é a sua melhor amiga?
- É. Ela que me trouxe para conhecer o Palácio. Ela é como a minha mãe.
- É bom ter uma amiga como companhia.
- Isso é o mesmo que a minha mãe dizia.
- E como se chama a sua mãe?
- Isabela.
- Meu nome é Isa. Só falta um pedaço para termos o mesmo nome.
- É.
- É só acrescentar “bela”.
- Minha mãe é bela.
- Quer dizer que eu sou feia?
- Não. Você é bela também.
- Obrigada. Fiquei alegre. Ainda bem que eu sou bela também.
- É bela.
Quando desceram da van, Isa deu a mão a Maristela para descer. Depois, foram andando no mesmo ritmo, lado a lado. Entraram no shopping. Os olhos das meninas ficaram deslumbrados. Maristela correu para o lado de Márcia, fazendo comentários em segredo. Vitrinas e mais vitrinas. Jogos eletrônicos. Patinação no gelo. Tudo deslumbrante, com tanta gente bonita e bem vestida. Roupas e cores. Adultos e crianças andando, pesquisando. Escada rolante? Riram de medo. Riram porque Joviana perdeu o passo na hora de entrar na escada e quase caiu. Riram demais. Na subida da escada, uma olhava para outra e elas não continham a alegria. Bastava uma escada rolante para encher de novidade esse dia festivo. Dona Isa, sempre distraidamente, estava ao lado de Maristela. Quando chegaram às bilheterias dos cinemas, dona Isa deu a mão à menina  e elas passaram a caminhar juntas. Assistiram a um filme de desenho animado. Sucesso total. Agora, a praça da alimentação. Sentaram-se e ficaram olhando para as mesas vizinhas. Que estavam comendo e bebendo essas pessoas? E elas, que iriam comer? A guia já tinha providenciado o lanche para o grupo, colocando sobre a mesa uma variedade de refrigerantes e sanduíches. Cada uma bebeu e comeu o que quis. Quando Maristela ia pegar um sanduíche, olhava primeiro para Márcia. Márcia autorizava com os olhos. Festa. Tudo festa.
A professora Isa estava sempre ao lado de Maristela, acompanhando-a discretamente como se fosse um encontro espontâneo. Enquanto todas estavam se divertindo, Maristela já tinha tomado seu refrigerante e olhava vagamente para o ambiente, perdida no espaço deslumbrante da sala de alimentação. Foi também com espontaneidade que a professora resolveu manter um pequeno diálogo.
- Tantas coisas diferentes, não é, Maristela?
- É.
- Gostou do refrigerante?
- Gostei.
- Quer mais um pouco?
- Não.
Estava difícil manter um diálogo mais fluente.  Tentou um tema mais pertinente.
- De que refrigerante você mais gosta?
- Minha mãe nunca comprava refrigerante.
- Por que ela não comprava?
- Não sei. Acho que ela não tinha dinheiro.
- Ahn! Em que bairro vocês moravam?
- Barreiro. Barreiro de Cima.
- E sua mãe continua morando lá?
- Não. Ela foi embora.
- Foi embora? Pra onde?
- Chegou um homem lá na vizinha e disse que ela tinha ido pro céu.
- Ahn! Você estava morando com a vizinha?
- Desde que a minha mãe foi para o hospital, eu fiquei dormindo na casa da vizinha.
- E seu pai?
- Não tenho pai.
- E irmãos? Parentes?
- Não tenho irmãos. Não conheço parentes.
- Então você ficou sozinha?
- Fiquei.
- E como você veio para a Divina Providência?
- Não sei. Uma mulher veio me buscar e disse para eu ir.
- Você foi sem saber para onde?
- É.
- Sentiu medo de ir com essa senhora?
- Senti.
- Você gostou dela?
- Gostei.
- E as suas roupas, brinquedos, livros, cadernos?
- Essa mulher foi à minha casa e fez uma mala. Ajuntou tudo.
- E a vizinha?
- Ela disse que eu tinha que ir. Não podia ficar morando na casa dela a vida inteira.
- E as coisas da sua mãe?
- Não sei.
- A casa era de sua mãe?
- Não.
- De quem era?
- Acho que era da minha vizinha mesmo. Minha mãe pagava.
- Ahn! Por isso você ficou muito triste?
- Sim.
- E agora?
- Não sei. Eu queria a minha mãe, outra vez. A Márcia falou que ela não volta nunca mais. A mãe dela também já foi para o céu, e ela disse que vai viver sozinha no mundo.
- Você vai ser feliz e tudo vai se arranjar.
- Não sei. Não tenho nada nem ninguém.
- O que você mais gostaria de ter?
- Não sei. Queria uma mãe só pra mim.
- Você vai encontrar outra mãe, pelo menos parecida com a primeira. Quantos anos você tem?
- Eu ia fazer oito quando minha mãe foi para o hospital.
- E agora?
- Ainda tenho oito. Meu aniversário é no dia primeiro de maio.
- Quanto tempo está no abrigo?
- Tem pouco tempo.
- Como é a vida lá no abrigo da Divina?
- Tem escola. Tem brincadeiras. Tem escola. Tem brincadeiras. Tem trabalho.
- Você está gostando de lá?
- Estou.
Quando estavam nessa conversa, terminaram de lanchar. Todas as pessoas se levantaram e foram caminhando em direção à saída para pegar a van. A tarde estava acabando, o sol quase não aparecia mais. Ficou um pouco escuro. As luzes estavam se acendendo e o shopping iluminado era muito mais bonito. Mas elas tinham que voltar. A professora Isa continuava sempre perto de Maristela e conversavam discretamente. Isa procurava manter essa conversa sem perder o fio da meada, para que a menina não tivesse mais aqueles momentos de depressão, de tristeza profunda e contagiante.
Foram diretamente para os seus aposentos  logo que chegaram, e a professora Isa despediu-se das meninas, uma por uma. Chegando a vez de despedir-se de Maristela, deu-lhe um abraço especial, beijou-a dos dois lados e perguntou, finalmente, em tom confidencial:
- Foi bom, Maristela?
Maristela não respondeu. Continuou abraçada à professora e, em soluços, disse que a professora era a pessoa que mais parecia com sua mãe. As lágrimas rolaram e a professora Isa levou-a para uma saleta vizinha, dizendo que viria para o batizado dos filhos de dona Carolina, no dia seguinte, e que iriam conversar muito mais. Limpou as lágrimas de Maristela com um lenço que tinha na bolsa e garantiu que iriam ser muito amigas para sempre. Maristela disse que sim e sorriu levemente. A professora saiu lentamente e depois de alguns passos, parou, olhou para trás e deu mais um adeus e lançou um beijinho. Maristela estava parada e retribuiu com as mãos o beijo da professora. Ficou ainda parada no corredor até que a professora entrasse na outra sala e desaparecesse. Assim, ela retornou ao convívio das colegas que estavam eufóricas com os presentes, com o shopping, com o lanche da praça de alimentação, com a escada rolante e com tudo, tudo mais. Era sábado. No domingo haveria o batizado dos gêmeos.  
Tudo parecia um sonho, e Maristela foi chegando ao grupo com cara de resto de tristeza. Pegou o pacote com suas roupas novas, abriu e estendeu o vestido novo em cima da cama. As colegas já tinham experimentado as roupas compradas e ficaram ajudando Maristela a vestir. “Ficou muito certinho”, exclamaram. Maristela também gostou. O dia foi passando rapidamente, a noite chegando e, já cansadas com tantas novidades, sentaram na frente do televisor do quarto e foram ver desenhos animados. Não estavam pensando em programas de televisão. Queriam viver momentos de ventura por elas mesmas. Agora, sim. Cansadas, sozinhas no quarto, podiam conversar também muito à vontade. Quase às nove horas da noite, chegou dona Carolina, acompanhada de duas amigas que vinham conhecer as meninas do orfanato. Depois das apresentações, veio a hora do lanche da noite. Lanche da noite? Sim... Isso mesmo. Dona Carolina convidou-as para o salão nobre, onde seria servido o café com leite e refrigerantes. Pão e biscoitos. Conversaram livremente, como se estivessem nas próprias casas, mas Márcia estava sempre ao lado de dona Carolina, como se a estivesse protegendo, ou como se estivesse querendo dizer: “Dona Carolina, minha madrinha, é minha.” Grande sentido de posse. Não sobrava nada para ninguém. Depois, foram conduzidas aos seus aposentos em despedidas e beijinhos. O dia tinha acabado. Que pena!


Em nome do filho. Rogério Alvarenga. Editora 3i, Belo Horizonte, 2014
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