As duas afilhadas do
abrigo foram convidadas a passar um fim de semana com o padrinho Perilo Neto e
com a madrinha dona Carolina. Para que elas não se sentissem isoladas ou
tímidas nessa visita, foi autorizado a cada uma escolher uma colega para passar
o fim de semana fora. Assim, Márcia indicou a colega Maristela, e Joviana
trouxe a colega Heleninha. Formavam um
pequeno grupo de amigas usufruindo de um passeio fora da sua comunidade. A
alegria dessas meninas era irradiante. Sentiam-se seguras e amparadas por dona
Carolina e pelo marido.
- A Maristela está muito triste. É normal
essa tristeza dela. Ela se lembra da mãe e começa a chorar, contagiando as
colegas. Elas têm problemas semelhantes de modo que embarcam logo nessa
tristeza, puxada pela Maristela.
- Compreendo bem as razões dessas jovens –
acrescentou a professora Isa. Vou ficar bem por perto dela para demonstrar
claramente a minha intenção de ajudar.
- Isso mesmo. Você percebeu bem a situação.
Acompanhe a Maristela especialmente. Ela está muito ressentida e eu mesma fico
emocionada com isso. Eu me entrego facilmente aos problemas e aflições dos
outros.
- Neste caso, penso que vou poder ajudar.
Eu também me entrego demais aos clientes. Profissionalmente é um erro. Eu me
envolvo e depois sofro com eles.
A professora Isa se apresentou às meninas,
dizendo-se amiga de dona Carolina e que iria com elas no passeio. Cumprimentou
uma por uma, perguntando por seu nome e idade. Foi fácil o acolhimento e a
integração de dona Isa ao grupo. Quando entraram na van que iria levá-las ao
Shopping, Isa procurou discretamente ficar ao lado de Maristela. Assim poderiam
manter um pequeno diálogo inicial. Não foi difícil encontrar palavras para
iniciar um relacionamento afetivo.
- Você já foi a um shopping, Maristela?
- Nunca. Minha mãe trabalhava o dia inteiro
e estava sempre cansada.
Isa não queria assunto “mãe”. Procurou
outros caminhos.
- A Márcia é a sua melhor amiga?
- É. Ela que me trouxe para conhecer o
Palácio. Ela é como a minha mãe.
- É bom ter uma amiga como companhia.
- Isso é o mesmo que a minha mãe dizia.
- E como se chama a sua mãe?
- Isabela.
- Meu nome é Isa. Só falta um pedaço para
termos o mesmo nome.
- É.
- É só acrescentar “bela”.
- Minha mãe é bela.
- Quer dizer que eu sou feia?
- Não. Você é bela também.
- Obrigada. Fiquei alegre. Ainda bem que eu
sou bela também.
- É bela.
Quando desceram da van, Isa deu a mão a
Maristela para descer. Depois, foram andando no mesmo ritmo, lado a lado.
Entraram no shopping. Os olhos das meninas ficaram deslumbrados. Maristela
correu para o lado de Márcia, fazendo comentários em segredo. Vitrinas e mais
vitrinas. Jogos eletrônicos. Patinação no gelo. Tudo deslumbrante, com tanta
gente bonita e bem vestida. Roupas e cores. Adultos e crianças andando,
pesquisando. Escada rolante? Riram de medo. Riram porque Joviana perdeu o passo
na hora de entrar na escada e quase caiu. Riram demais. Na subida da escada,
uma olhava para outra e elas não continham a alegria. Bastava uma escada
rolante para encher de novidade esse dia festivo. Dona Isa, sempre distraidamente,
estava ao lado de Maristela. Quando chegaram às bilheterias dos cinemas, dona
Isa deu a mão à menina e elas passaram a
caminhar juntas. Assistiram a um filme de desenho animado. Sucesso total.
Agora, a praça da alimentação. Sentaram-se e ficaram olhando para as mesas
vizinhas. Que estavam comendo e bebendo essas pessoas? E elas, que iriam comer?
A guia já tinha providenciado o lanche para o grupo, colocando sobre a mesa uma
variedade de refrigerantes e sanduíches. Cada uma bebeu e comeu o que quis.
Quando Maristela ia pegar um sanduíche, olhava primeiro para Márcia. Márcia
autorizava com os olhos. Festa. Tudo festa.
A professora Isa estava sempre ao lado de
Maristela, acompanhando-a discretamente como se fosse um encontro espontâneo. Enquanto
todas estavam se divertindo, Maristela já tinha tomado seu refrigerante e
olhava vagamente para o ambiente, perdida no espaço deslumbrante da sala de
alimentação. Foi também com espontaneidade que a professora resolveu manter um
pequeno diálogo.
- Tantas coisas diferentes, não é,
Maristela?
- É.
- Gostou do refrigerante?
- Gostei.
- Quer mais um pouco?
- Não.
Estava difícil manter um diálogo mais
fluente. Tentou um tema mais pertinente.
- De que refrigerante você mais gosta?
- Minha mãe nunca comprava refrigerante.
- Por que ela não comprava?
- Não sei. Acho que ela não tinha dinheiro.
- Ahn! Em que bairro vocês moravam?
- Barreiro. Barreiro de Cima.
- E sua mãe continua morando lá?
- Não. Ela foi embora.
- Foi embora? Pra onde?
- Chegou um homem lá na vizinha e disse que
ela tinha ido pro céu.
- Ahn! Você estava morando com a vizinha?
- Desde que a minha mãe foi para o
hospital, eu fiquei dormindo na casa da vizinha.
- E seu pai?
- Não tenho pai.
- E irmãos? Parentes?
- Não tenho irmãos. Não conheço parentes.
- Então você ficou sozinha?
- Fiquei.
- E como você veio para a Divina
Providência?
- Não sei. Uma mulher veio me buscar e
disse para eu ir.
- Você foi sem saber para onde?
- É.
- Sentiu medo de ir com essa senhora?
- Senti.
- Você gostou dela?
- Gostei.
- E as suas roupas, brinquedos, livros,
cadernos?
- Essa mulher foi à minha casa e fez uma
mala. Ajuntou tudo.
- E a vizinha?
- Ela disse que eu tinha que ir. Não podia
ficar morando na casa dela a vida inteira.
- E as coisas da sua mãe?
- Não sei.
- A casa era de sua mãe?
- Não.
- De quem era?
- Acho que era da minha vizinha mesmo.
Minha mãe pagava.
- Ahn! Por isso você ficou muito triste?
- Sim.
- E agora?
- Não sei. Eu queria a minha mãe, outra
vez. A Márcia falou que ela não volta nunca mais. A mãe dela também já foi para
o céu, e ela disse que vai viver sozinha no mundo.
- Você vai ser feliz e tudo vai se
arranjar.
- Não sei. Não tenho nada nem ninguém.
- O que você mais gostaria de ter?
- Não sei. Queria uma mãe só pra mim.
- Você vai encontrar outra mãe, pelo menos
parecida com a primeira. Quantos anos você tem?
- Eu ia fazer oito quando minha mãe foi
para o hospital.
- E agora?
- Ainda tenho oito. Meu aniversário é no
dia primeiro de maio.
- Quanto tempo está no abrigo?
- Tem pouco tempo.
- Como é a vida lá no abrigo da Divina?
- Tem escola. Tem brincadeiras. Tem escola.
Tem brincadeiras. Tem trabalho.
- Você está gostando de lá?
- Estou.
Quando estavam nessa conversa, terminaram
de lanchar. Todas as pessoas se levantaram e foram caminhando em direção à
saída para pegar a van. A tarde estava acabando, o sol quase não aparecia mais.
Ficou um pouco escuro. As luzes estavam se acendendo e o shopping iluminado era
muito mais bonito. Mas elas tinham que voltar. A professora Isa continuava
sempre perto de Maristela e conversavam discretamente. Isa procurava manter
essa conversa sem perder o fio da meada, para que a menina não tivesse mais
aqueles momentos de depressão, de tristeza profunda e contagiante.
Foram diretamente para os seus
aposentos logo que chegaram, e a
professora Isa despediu-se das meninas, uma por uma. Chegando a vez de
despedir-se de Maristela, deu-lhe um abraço especial, beijou-a dos dois lados e
perguntou, finalmente, em tom confidencial:
- Foi bom, Maristela?
Maristela não respondeu. Continuou abraçada
à professora e, em soluços, disse que a professora era a pessoa que mais
parecia com sua mãe. As lágrimas rolaram e a professora Isa levou-a para uma
saleta vizinha, dizendo que viria para o batizado dos filhos de dona Carolina,
no dia seguinte, e que iriam conversar muito mais. Limpou as lágrimas de
Maristela com um lenço que tinha na bolsa e garantiu que iriam ser muito amigas
para sempre. Maristela disse que sim e sorriu levemente. A professora saiu
lentamente e depois de alguns passos, parou, olhou para trás e deu mais um
adeus e lançou um beijinho. Maristela estava parada e retribuiu com as mãos o
beijo da professora. Ficou ainda parada no corredor até que a professora
entrasse na outra sala e desaparecesse. Assim, ela retornou ao convívio das
colegas que estavam eufóricas com os presentes, com o shopping, com o lanche da
praça de alimentação, com a escada rolante e com tudo, tudo mais. Era sábado.
No domingo haveria o batizado dos gêmeos.
Tudo parecia um sonho, e Maristela foi
chegando ao grupo com cara de resto de tristeza. Pegou o pacote com suas roupas
novas, abriu e estendeu o vestido novo em cima da cama. As colegas já tinham
experimentado as roupas compradas e ficaram ajudando Maristela a vestir. “Ficou
muito certinho”, exclamaram. Maristela também gostou. O dia foi passando
rapidamente, a noite chegando e, já cansadas com tantas novidades, sentaram na
frente do televisor do quarto e foram ver desenhos animados. Não estavam
pensando em programas de televisão. Queriam viver momentos de ventura por elas
mesmas. Agora, sim. Cansadas, sozinhas no quarto, podiam conversar também muito
à vontade. Quase às nove horas da noite, chegou dona Carolina, acompanhada de
duas amigas que vinham conhecer as meninas do orfanato. Depois das
apresentações, veio a hora do lanche da noite. Lanche da noite? Sim... Isso
mesmo. Dona Carolina convidou-as para o salão nobre, onde seria servido o café
com leite e refrigerantes. Pão e biscoitos. Conversaram livremente, como se estivessem
nas próprias casas, mas Márcia estava sempre ao lado de dona Carolina, como se
a estivesse protegendo, ou como se estivesse querendo dizer: “Dona Carolina,
minha madrinha, é minha.” Grande sentido de posse. Não sobrava nada para
ninguém. Depois, foram conduzidas aos seus aposentos em despedidas e beijinhos.
O dia tinha acabado. Que pena!
Em nome do filho.
Rogério Alvarenga. Editora 3i, Belo Horizonte, 2014
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