quarta-feira, 27 de setembro de 2017

BUSCA E APREENSÃO DE NICÁCIO GÖEBEL


Não maldigas o rigor da iníqua sorte, por mais atroz que seja e sem piedade, dizia, em soneto, D.Pedro II. Pois mal rompera a madrugada, no alto das montanhas do bairro Belvedere de Mináglia, duas viaturas policiais estacionaram em frente à residência de Fausto Leonísio Brasco.


Desceram quatro soldados armados, um cabo e um sargento. Da outra viatura, dois homens de colete preto. A rua estava deserta. O sargento adiantou-se e, ao invés de chamar pela campainha do portão, resolveu bater com o cano do revólver na porta principal da residência. Nicácio Goëbel já pegava a sua moto para dirigir-se à escola. Dona Amélia veio atender e teve um susto imediato.
- Este aqui é o mandato de busca e apreensão, assinado pelo delegado, doutor Carlinomota. Estamos procurando o estuprador Nicácio Goëbel.
Já estavam os oito policiais dentro da sala da residência, com vozes alteradas em grande agressividade. Juntam-se os filhos e filhas de dona Amélia, todos em trajes de dormir. Também Fausto Leonísio, de bermuda e sem camisa.
- Que é que vocês querem? Como é que vão entrando assim em domicílio? Isso é uma arbitrariedade.
- Viemos buscar esse pilantra do Nicácio Goëbel, que, por sinal, meus companheiros já puseram as pulseiras nele. Ele vai conosco. E o senhor fique calado que vamos fazer as buscas recomendadas. Veio pedido expresso do Secretário de Estado de Segurança Pública e recomendação do capitão Siqueira, da capital.
Antes de o sargento terminar o seu discurso, seus companheiros já estavam invadindo quarto por quarto, armário por armário, revirando roupas e objetos das gavetas pelo chão, procurando não se sabe o quê. A casa ficou um verdadeiro monte de roupas e de diversos objetos de serventia e as próprias gavetas vazias jogadas pelo chão.
- Isto não vai ficar assim, sargento. Você vai pagar caro por isso tudo. Sua cara está marcada pela nossa família e, juntos, vamos acabar com vocês, mais hoje mais amanhã.
- E fica calado e quieto aí, coroa. Senão vai sobrar pra você agora mesmo. Viemos buscar só um, mas podemos levar dois ou três. Tudo vai ser lucro. Você tem um bandido estuprador dentro de casa e está reclamando de quê?
- E pra levar meu filho tem que me levar primeiro!
- Passa a algema nele, gente. Tem lugar pra mais um.
As filhas e filhos em desespero, alucinados, em prantos, agarradas ao pai e à mãe, choravam aos gritos. Os rapazes olhavam impassíveis, aguardando os acontecimentos. Levaram as mochilas dos filhos, jogadas dentro das viaturas. Empurraram Fausto Leonísio pra dentro da viatura policial.
- Vocês vão se arrepender! Sabem com quem estão falando?
O sargento olhou para os companheiros e todos riram com zombaria.
- Essa história de quem sou eu, é velha, cara. Arranja outra. Já ouvimos isso centenas de vezes. Você sabe com quem está falando? Estou falando com o pai de um estuprador violento que vai pagar caro. Vamos embora. Tem mais: “Qualquer hora voltamos pra fazer outras apreensões.”
Na residência não havia computador, mas levaram uma máquina fotográfica que estava sobre a mesa e um gravador de som. Parece que pegaram outros objetos que estavam disponíveis, mas ninguém viu realmente tudo que levaram. Nas gavetas não encontraram nada que pudesse incriminar qualquer das pessoas da casa. Apenas a reviravolta das roupas pessoais e roupa de cama que estiveram cuidadosamente dobradas nas gavetas. A família nunca tinha presenciado nada igual. Difícil será ouvir todas as lamentações de dona Amélia, com toda a sua carga de espanto, de ódio e de desespero. Mesmo assim, amargurando a agressão sofrida, não se esqueceram de que Nicácio tinha sido levado, algemado. Que seria? Dona Amélia sofreu mais do que se fosse um dos seus filhos. Ele lhe tinha sido confiado pessoalmente pela irmã. Haveria de cuidar dele, acima de todas as coisas de sua vida. Responsabilidade em que não lhe era permitida qualquer fraqueza. Antes de iniciar o rearranjo de sua casa, telefonou para o doutor Gumercindo Taveira, advogado da empresa de seu marido.
- Socorro, doutor Gumercindo Taveira! De madrugada, fomos vítimas de um bando de policiais que invadiram nossa casa, algemaram meu filho Nicácio. Por fim, algemaram Fausto Leonísio também. Ele não suportou tanta agressividade e teve que reagir à altura. Foi algemado e levado na viatura cheia de policiais, mesmo estando de bermuda e sem camisa. Uma covardia que nunca imaginei que pudesse assistir nesta minha vida. Nicácio estava algemado, acusado não sei de quê. Devem ter ido para a delegacia, por ordem do delegado Carlinomota.
- Dona Amélia! Estou abismado. Estou partindo para a delegacia, imediatamente. Qualquer que seja a situação vou tomar as necessárias providências. Sinto muito por tudo que aconteceu. Fique tranquila que vou resolver tudo e exigir as reparações pelos danos causados.
- Obrigada, doutor. Confio totalmente na sua competência.
- Vou passar na sua casa para assinar uma autorização de autuação. 
As viaturas sumiram na curva da rua, com as sirenes ligadas. Nesse momento, já um grupo de pessoas, vizinhos apreensivos, se postavam ao redor da casa, oferecendo préstimos, ajuda, conforto, carinho para a família de Fausto e Amélia.
Na delegacia, houve o desembarque das encomendas. Nícácio, algemado, foi conduzido para um depósito de presos. Fausto Leonísio, calado, aguardaria o delegado Carlinomota, que deveria chegar por volta das dez horas. Eram ainda sete horas desse malfadado dia, imprevisível, atormentado, tenebroso.
O delegado não estava bem-humorado quando chegou. Era uma segunda-feira nublada, cinzenta, como geralmente são as segundas-feiras. Ao chegar, não olhou para nenhum dos lados. Apenas para frente e seguiu com passos largos. Os militares que estavam em plantão se afastaram e ele passou direto para o seu gabinete. Abriu a porta com violência e bateu-a de volta, assustando a todos que estavam nas salas ao lado. Leonísio ficou esperando. Dona Amélia aguardava a proteção jurídica do advogado da família que estava a caminho da delegacia. Mas seus clientes estavam incomunicáveis até àquela hora. Nicácio foi obrigado a tirar toda a roupa, ficando apenas de cueca, depositando suas roupas numa sacola que lhe foi entregue. Em seguida, foi encaminhado para um grande salão, onde estavam outros dez ou doze homens, também com os mesmos trajes. Todos na cela se admiraram com um adolescente encarcerado e quiseram saber logo o motivo de sua detenção.
Por outro lado, Fausto Leonísio, que foi algemado quando usava apenas uma bermuda preta e uma sandália de dedo, foi colocado numa cela em separado, isolado de tudo. Deram-lhe uma camisa azul, usual da delegacia, para usar quando chegasse a hora de seu depoimento. Tais procedimentos, tanto com referência ao jovem Nicácio, quanto ao senhor Fausto Leonísio, foram feitos desconsiderando as suas condições naturais. Um, por ser menor de idade e outro por ser idoso, com aproximadamente 80 anos de idade, major reformado do Exército Nacional e venerado ex-pracinha da Força Expedicionária Brasileira, FEB, em sua vitoriosa participação na Segunda Grande Guerra Mundial de 1939/1945.
O advogado da família teria, pois, argumentos legítimos para a defesa desses possíveis réus, violentamente conduzidos à delegacia, sem um motivo claro e justo para que tal fato pudesse ocorrer. Havia, pelo que foi declarado pelo sargento, comandante da guarnição, uma ordem de busca e apreensão, vinda do próprio Secretário de Estado de Segurança Pública. Nessas circunstâncias, a ordem superior deveria ser cumprida, entretanto, não revestida do inusitado rigor. De qualquer forma, essa ordem vinda de cima, teria que ser analisada também com os devidos requintes jurídicos, e responsabilizadas e assumidas pelas fontes de informação que ocasionaram essas determinações.
Tal secretário deveria ter recebido solicitações pessoais de algum outro componente do governo, possivelmente solicitações verbais, para efetuar esses procedimentos, recomendados à Delegacia de Polícia de Mináglia, o que viria a compor um quadro de corrupção administrativa. O advogado de defesa teria a oportunidade de avançar os seus tentáculos jurídicos para a defesa dos réus, inclusive para envolver esferas superiores e obter compensações justas e compensatórias pelos danos morais causados, além de denunciar esses procedimentos autoritários.       
Carlinomota, de terno e gravata, cabelo bem penteado, não cumprimentou ninguém na sua passagem até o seu gabinete. Trancou a porta a chave. A princípio, estava com o humor a zero. Dez minutos depois, por telefone, chama o sargento de plantão e pergunta o que está acontecendo de novo na Delegacia. O sargento, pelo computador,  transmite para o aparelho do delegado todo o conteúdo do caso.
- A ação de busca e apreensão feita pelo sargento 43 deu resultado, delegado. Ele trouxe esse cara que foi pedido pelo Secretário de Segurança Pública, e o pai dele também. Dizem que é um estuprador que está no depósito de presos, e o outro é o pai dele, que foi colocado na cela 2, porque dizem que é pessoa importante da cidade.
- Que mais?
- Na tela do seu computador tem uma relação das pessoas recolhidas na noite de domingo, gente variada.
- Estou vendo a relação e o boletim de ocorrência de cada um.
Não tinha passado meia hora quando chegou o doutor Gumercindo Taveira, com dois habeas corpus de seus clientes, major Fausto Leonísio Brasco e do seu filho Nicácio Goëbel, já assinados pelo Juiz João Luiz Loureiro. O advogado precisava falar com o delegado para as devidas providências. Essa a comunicação feita pelo sargento 43, o mesmo que tinha feito a ação de busca e apreensão.
- Doutor Carlinomota, bom dia.
- Bom dia, doutor Gumercindo Taveira. Garanto que o senhor está vindo para botar na rua algum bandido. O senhor não perde tempo, doutor.
- Realmente, delegado. Agora, nesse caso, meus clientes são dois. Penso que o senhor terá alguma surpresa. O sargento 43, como o senhor pode ler no B.O., Boletim de Ocorrências, agiu prontamente numa ação de busca e apreensão, mas acabou cometendo alguns deslizes.
- Sempre quem está tentando corrigir as alterações da ordem e da paz social são vítimas desses chamados deslizes. É comum isso. Vamos ver. Vamos ver isso, doutor Gumercindo. Olha aí, um estuprador e um desacato à autoridade constituída.
- Se o senhor acabar de ler o texto do pedido de habeas corpus verá que há problemas maiores que estão sendo alvo de justificativa, denunciada pelo Juiz doutor João Luís Loureiro.
- Sim. Vejamos, doutor. As observações e justificativas estão aqui abaixo. Mas aqui está. Esse juiz está mandando pra rua um estuprador?
- Observe bem, doutor. O jovem Nicácio Göebel é menor de idade, não pode ser algemado sem flagrante formado, nem ser colocado em depósito de presos comuns em delegacia. Isso constitui crime de violência e arbitrariedade. Pode ser colocado em responsabilidade criminal o sargento comandante da guarnição e, se tal libertação não for imediata, a imprensa estará alertada para documentar essa alteração da ordem, com possíveis punições generalizadas.
- Quero falar com o sargento 43, imediatamente.

Referência bibliográfica 
Alvarenga, Rogério. Em nome do Filho. Edidora 3i, BH, 2014



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