Não maldigas o rigor
da iníqua sorte, por mais atroz que seja e sem piedade, dizia, em soneto,
D.Pedro II. Pois mal rompera a madrugada, no alto das montanhas do bairro
Belvedere de Mináglia, duas viaturas policiais estacionaram em frente à
residência de Fausto Leonísio Brasco.
Desceram quatro soldados armados, um cabo e
um sargento. Da outra viatura, dois homens de colete preto. A rua estava
deserta. O sargento adiantou-se e, ao invés de chamar pela campainha do portão,
resolveu bater com o cano do revólver na porta principal da residência. Nicácio
Goëbel já pegava a sua moto para dirigir-se à escola. Dona Amélia veio atender
e teve um susto imediato.
- Este aqui é o mandato de busca e apreensão,
assinado pelo delegado, doutor Carlinomota. Estamos procurando o estuprador
Nicácio Goëbel.
Já estavam os oito policiais dentro da sala
da residência, com vozes alteradas em grande agressividade. Juntam-se os filhos
e filhas de dona Amélia, todos em trajes de dormir. Também Fausto Leonísio, de
bermuda e sem camisa.
- Que é que vocês querem? Como é que vão
entrando assim em domicílio? Isso é uma arbitrariedade.
- Viemos buscar esse pilantra do Nicácio
Goëbel, que, por sinal, meus companheiros já puseram as pulseiras nele. Ele vai
conosco. E o senhor fique calado que vamos fazer as buscas recomendadas. Veio
pedido expresso do Secretário de Estado de Segurança Pública e recomendação do
capitão Siqueira, da capital.
Antes de o sargento terminar o seu discurso,
seus companheiros já estavam invadindo quarto por quarto, armário por armário,
revirando roupas e objetos das gavetas pelo chão, procurando não se sabe o quê.
A casa ficou um verdadeiro monte de roupas e de diversos objetos de serventia e
as próprias gavetas vazias jogadas pelo chão.
- Isto não vai ficar assim, sargento. Você
vai pagar caro por isso tudo. Sua cara está marcada pela nossa família e,
juntos, vamos acabar com vocês, mais hoje mais amanhã.
- E fica calado e quieto aí, coroa. Senão
vai sobrar pra você agora mesmo. Viemos buscar só um, mas podemos levar dois ou
três. Tudo vai ser lucro. Você tem um bandido estuprador dentro de casa e está
reclamando de quê?
- E pra levar meu filho tem que me levar
primeiro!
- Passa a algema nele, gente. Tem lugar pra
mais um.
As filhas e filhos em desespero,
alucinados, em prantos, agarradas ao pai e à mãe, choravam aos gritos. Os
rapazes olhavam impassíveis, aguardando os acontecimentos. Levaram as mochilas
dos filhos, jogadas dentro das viaturas. Empurraram Fausto Leonísio pra dentro
da viatura policial.
- Vocês vão se arrepender! Sabem com quem
estão falando?
O sargento olhou para os companheiros e
todos riram com zombaria.
- Essa história de quem sou eu, é velha,
cara. Arranja outra. Já ouvimos isso centenas de vezes. Você sabe com quem está
falando? Estou falando com o pai de um estuprador violento que vai pagar caro.
Vamos embora. Tem mais: “Qualquer hora voltamos pra fazer outras apreensões.”
Na residência não havia computador, mas
levaram uma máquina fotográfica que estava sobre a mesa e um gravador de som.
Parece que pegaram outros objetos que estavam disponíveis, mas ninguém viu
realmente tudo que levaram. Nas gavetas não encontraram nada que pudesse
incriminar qualquer das pessoas da casa. Apenas a reviravolta das roupas
pessoais e roupa de cama que estiveram cuidadosamente dobradas nas gavetas. A
família nunca tinha presenciado nada igual. Difícil será ouvir todas as
lamentações de dona Amélia, com toda a sua carga de espanto, de ódio e de
desespero. Mesmo assim, amargurando a agressão sofrida, não se esqueceram de
que Nicácio tinha sido levado, algemado. Que seria? Dona Amélia sofreu mais do
que se fosse um dos seus filhos. Ele lhe tinha sido confiado pessoalmente pela
irmã. Haveria de cuidar dele, acima de todas as coisas de sua vida.
Responsabilidade em que não lhe era permitida qualquer fraqueza. Antes de
iniciar o rearranjo de sua casa, telefonou para o doutor Gumercindo Taveira,
advogado da empresa de seu marido.
- Socorro, doutor Gumercindo Taveira! De
madrugada, fomos vítimas de um bando de policiais que invadiram nossa casa,
algemaram meu filho Nicácio. Por fim, algemaram Fausto Leonísio também. Ele não
suportou tanta agressividade e teve que reagir à altura. Foi algemado e levado
na viatura cheia de policiais, mesmo estando de bermuda e sem camisa. Uma
covardia que nunca imaginei que pudesse assistir nesta minha vida. Nicácio
estava algemado, acusado não sei de quê. Devem ter ido para a delegacia, por
ordem do delegado Carlinomota.
- Dona Amélia! Estou abismado. Estou
partindo para a delegacia, imediatamente. Qualquer que seja a situação vou
tomar as necessárias providências. Sinto muito por tudo que aconteceu. Fique
tranquila que vou resolver tudo e exigir as reparações pelos danos causados.
- Obrigada, doutor. Confio totalmente na
sua competência.
- Vou passar na sua casa para assinar uma
autorização de autuação.
As viaturas sumiram na curva da rua, com as
sirenes ligadas. Nesse momento, já um grupo de pessoas, vizinhos apreensivos,
se postavam ao redor da casa, oferecendo préstimos, ajuda, conforto, carinho
para a família de Fausto e Amélia.
Na delegacia, houve o desembarque das
encomendas. Nícácio, algemado, foi conduzido para um depósito de presos. Fausto
Leonísio, calado, aguardaria o delegado Carlinomota, que deveria chegar por
volta das dez horas. Eram ainda sete horas desse malfadado dia, imprevisível,
atormentado, tenebroso.
O delegado não estava bem-humorado quando
chegou. Era uma segunda-feira nublada, cinzenta, como geralmente são as segundas-feiras.
Ao chegar, não olhou para nenhum dos lados. Apenas para frente e seguiu com
passos largos. Os militares que estavam em plantão se afastaram e ele passou
direto para o seu gabinete. Abriu a porta com violência e bateu-a de volta,
assustando a todos que estavam nas salas ao lado. Leonísio ficou esperando.
Dona Amélia aguardava a proteção jurídica do advogado da família que estava a
caminho da delegacia. Mas seus clientes estavam incomunicáveis até àquela hora.
Nicácio foi obrigado a tirar toda a roupa, ficando apenas de cueca, depositando
suas roupas numa sacola que lhe foi entregue. Em seguida, foi encaminhado para
um grande salão, onde estavam outros dez ou doze homens, também com os mesmos
trajes. Todos na cela se admiraram com um adolescente encarcerado e quiseram
saber logo o motivo de sua detenção.
Por outro lado, Fausto Leonísio, que foi
algemado quando usava apenas uma bermuda preta e uma sandália de dedo, foi
colocado numa cela em separado, isolado de tudo. Deram-lhe uma camisa azul, usual
da delegacia, para usar quando chegasse a hora de seu depoimento. Tais
procedimentos, tanto com referência ao jovem Nicácio, quanto ao senhor Fausto
Leonísio, foram feitos desconsiderando as suas condições naturais. Um, por ser
menor de idade e outro por ser idoso, com aproximadamente 80 anos de idade,
major reformado do Exército Nacional e venerado ex-pracinha da Força
Expedicionária Brasileira, FEB, em sua vitoriosa participação na Segunda Grande
Guerra Mundial de 1939/1945.
Tal secretário deveria ter recebido
solicitações pessoais de algum outro componente do governo, possivelmente
solicitações verbais, para efetuar esses procedimentos, recomendados à
Delegacia de Polícia de Mináglia, o que viria a compor um quadro de corrupção
administrativa. O advogado de defesa teria a oportunidade de avançar os seus
tentáculos jurídicos para a defesa dos réus, inclusive para envolver esferas
superiores e obter compensações justas e compensatórias pelos danos morais
causados, além de denunciar esses procedimentos autoritários.
Carlinomota, de terno e gravata, cabelo bem
penteado, não cumprimentou ninguém na sua passagem até o seu gabinete. Trancou
a porta a chave. A princípio, estava com o humor a zero. Dez minutos depois,
por telefone, chama o sargento de plantão e pergunta o que está acontecendo de
novo na Delegacia. O sargento, pelo computador,
transmite para o aparelho do delegado todo o conteúdo do caso.
- A ação de busca e apreensão feita pelo
sargento 43 deu resultado, delegado. Ele trouxe esse cara que foi pedido pelo
Secretário de Segurança Pública, e o pai dele também. Dizem que é um estuprador
que está no depósito de presos, e o outro é o pai dele, que foi colocado na
cela 2, porque dizem que é pessoa importante da cidade.
- Que mais?
- Na tela do seu computador tem uma relação
das pessoas recolhidas na noite de domingo, gente variada.
- Estou vendo a relação e o boletim de
ocorrência de cada um.
Não tinha passado meia hora quando chegou o
doutor Gumercindo Taveira, com dois habeas corpus de seus clientes, major
Fausto Leonísio Brasco e do seu filho Nicácio Goëbel, já assinados pelo Juiz João
Luiz Loureiro. O advogado precisava falar com o delegado para as devidas
providências. Essa a comunicação feita pelo sargento 43, o mesmo que tinha
feito a ação de busca e apreensão.
- Doutor Carlinomota, bom dia.
- Bom dia, doutor Gumercindo Taveira.
Garanto que o senhor está vindo para botar na rua algum bandido. O senhor não
perde tempo, doutor.
- Realmente, delegado. Agora, nesse caso,
meus clientes são dois. Penso que o senhor terá alguma surpresa. O sargento 43,
como o senhor pode ler no B.O., Boletim de Ocorrências, agiu prontamente numa
ação de busca e apreensão, mas acabou cometendo alguns deslizes.
- Sempre quem está tentando corrigir as
alterações da ordem e da paz social são vítimas desses chamados deslizes. É
comum isso. Vamos ver. Vamos ver isso, doutor Gumercindo. Olha aí, um
estuprador e um desacato à autoridade constituída.
- Se o senhor acabar de ler o texto do
pedido de habeas corpus verá que há problemas maiores que estão sendo alvo de
justificativa, denunciada pelo Juiz doutor João Luís Loureiro.
- Sim. Vejamos, doutor. As observações e
justificativas estão aqui abaixo. Mas aqui está. Esse juiz está mandando pra
rua um estuprador?
- Observe bem, doutor. O jovem Nicácio
Göebel é menor de idade, não pode ser algemado sem flagrante formado, nem ser
colocado em depósito de presos comuns em delegacia. Isso constitui crime de
violência e arbitrariedade. Pode ser colocado em responsabilidade criminal o
sargento comandante da guarnição e, se tal libertação não for imediata, a
imprensa estará alertada para documentar essa alteração da ordem, com possíveis
punições generalizadas.
- Quero falar com o sargento 43,
imediatamente.
Referência bibliográfica
Alvarenga, Rogério. Em nome do Filho. Edidora 3i, BH, 2014
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