quinta-feira, 30 de agosto de 2012

HELENA ANTIPOFF - ENTREVISTA VIRTUAL


    A PSICÓLOGA DE MINAS GERAIS

Em 1929, aportou em terras mineiras, contratada pelo estado, a jovem psicóloga russa, Helena Antipoff, para um trabalho que duraria, em princípio, dois anos. Aqui ficou e trabalhou até o seu último dia de vida, ainda com grandes projetos em execução. Suas palavras ao despedir-se da vida: “fico envergonhada de morrer deixando ainda tanta coisa por fazer.”
                                                                          
Autor: Rogério de Alvarenga


APRESENTAÇÃO
O ex- governador do estado de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, em 1929, decidiu importar talentos para dar reforma ao ensino e força ao desenvolvimento da educação. Conseguiu, depois de várias tentativas, a contratação do expoente máximo da psicopedagogia de Genebra. Muitos especialistas vêm e voltam. A jovem Helena Antipoff veio e ficou. Nos seus últimos 45 anos de vida, esteve ligada a um trabalho específico: a educação de jovens, como uma obsessão irremovível. Nunca parou para pensar sobre as possibilidades e conveniências. Agir era seu lema. As teorias são fundamentais, mas a prática acompanha, rasteja, comprova. Parecia uma “extraterrestre”, agindo, implantando, incentivando, pedindo ajuda, puxando as correntes na frente. Na fazenda do Rosário, essa fazendeira russa de Ibirité, essa mineira de São Petersburgo, implantou um modelo de assistência e orientação educacional, referência para o Brasil inteiro. “Dona Helena mexeu praticamente em tudo. Marcou época. Ligou o pensamento à ação. Pesquisou. Fez laboratório, e fez educação em larga escala. Escreveu. Inovou. Ensinou. Propôs a pedagogia funcional que mudou o rumo de nosso ensino de papagaio”, como o disse Otto Lara Resende. Dona Helena tinha que ser como foi. Emissária das celestes estepes.

Entrevistador - Disponível para uma entrevista virtual, professora Helena Antipoff?
Helena Antipoff – Sempre estou disponível. Por onde começar?      
Entrevistador - Iniciando esta entrevista virtual, sinto-me na obrigação de dizer da minha satisfação de poder contar com as suas palavras, sempre cheias de otimismo e de calor humano. 
H A - Dediquei minha vida, realmente, a causas humanitárias e à educação, sempre em benefício da coletividade. Isto significa que obsessivamente me preocupei com a causa do desenvolvimento das pessoas, onde quer que elas estivessem.
E - Mas, a senhora chegou ao Brasil em 1929?
H A - Realmente! Em abril, assinei contrato com o governo do estado de Minas Gerais, por dois anos. Estava ainda trabalhando em Genebra, no Instituto Jean Jacques Rousseau e, a partir desse mês, comecei os preparativos para a viagem ao Brasil, despedindo-me dos amigos, dos colegas e dos mestres.
E - Naquele tempo as viagens eram mais difíceis.
H A - É verdade. Vim pelo navio transatlântico italiano Júlio César, de 200m de comprimento. Uma viagem que durou 14 dias, de Gênova a Santos.
E - Uma aventura?
H A - Sim! Uma aventura. Tive um convite para trabalhar no Egito e outro no Brasil. Tive informações pelo psicólogo Leon Walther de que as condições de trabalho no Brasil eram bem favoráveis. Ele teve contrato de trabalho e aqui permaneceu por dois anos. Fiz a minha opção.
E - E a família? Deixou os entes queridos na Europa?
H A - Uma semana antes do meu embarque, tivemos uma despedida inesquecível. Reunimo-nos numa casa confortável em Villefranche sur Mer, na região de Côte d´Azur. Minha mãe, Sofia, minha irmã Tânia com um colega do curso de odontologia. Além de Daniel, meu filho único, muito amado, que já estava com dez anos de idade. Foi a última vez que nos reunimos. Não estava presente a minha irmã Zina, que já morava nos Estados Unidos.
E - A senhora não trouxe o seu filho Daniel para o Brasil?
H A - Nessa oportunidade, não achei conveniente a vinda dele. Como disse, era uma aventura pelo desconhecido, com informações de dificuldades para a sua formação, além de doenças tropicais, cobras e tantas outras coisas que se falavam do Brasil, naquela época.
E - E o seu filho de dez anos ficou na França?
H A - Deixei-o sob os cuidados de uma colega Mlle. Marguerite Sabeyran, internado na sua escola, em Dieulefit. Ah! Esqueci-me de dizer que também estava presente em Côte d´Azur, o meu marido, o jornalista russo Victor Iretzky. Ele residia, exilado, na Alemanha e veio para as nossas despedidas. Foi a última vez que o vi. Ele trouxe de presente para mim um anel com uma bela pedra de ônix, preta, que passei a usar por toda a minha vida. Foram dias de alegria e de tristeza. Mesmo assim, vivemos a emoção do reencontro e da despedida. Lembro-me dos lenços brancos do cais. Lenços brancos da despedida, que foram ficando pequeninos até desaparecer. Mesmo assim, nunca desapareceram da minha memória. Minha vida é cheia de recordações
E - Depois dessa semana, todos se dispersaram?
H A - Realmente foi isso que aconteceu, como estava previsto. Daniel ficou para passar uns dias com o pai, num passeio pela França. Os outros, logo após, foram cumprir o seu destino.
E - E a senhora, para o Brasil?
H A - Desembarquei no porto de Santos no dia 6 de agosto de 1929. Durante a longa viagem, comecei a estudar a língua portuguesa. Estabeleci a meta de aprender pelo menos 300 palavras antes de desembarcar.
E - E as primeiras impressões?
H A - Uma bela recepção. Estavam presentes o meu colega Leon Walther, o psicólogo e o educador Lourenço Filho. Fomos para a cidade de São Paulo, em seguida.
E - Não entendia o que falavam?
H A - Algumas palavras eu conseguia entender. Percebi uma entonação de vozes que me lembrava a língua russa.
E - Depois, Belo Horizonte!
H A - Sim, onde fui recebida pelo doutor Mário Casasanta, Inspetor Geral da Educação Pública do estado de Minas Gerais. Fiquei hospedada no Grande Hotel, localizado na rua da Bahia, onde fica hoje o edifício Maletta. Logo depois, tive a visita da professora Amélia Monteiro de Castro, diretora da Escola de Aperfeiçoamento, onde eu iria trabalhar.
E - Depois, foi recebida pelo governador!
H A - Fui conduzida ao secretário de Educação do Estado, doutor Francisco Campos e, assim, fomos recebidos pelo governador, Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. Senti-me segura e valorizada. Desse momento em diante, senti que estava sendo tratada com uma consideração especial e minha responsabilidade crescia a cada momento. Pressenti que iria ter muito trabalho pela frente e criei forças para enfrentar desafios. Vim para um contrato de trabalho de dois anos. Não sabia que a minha vida estava determinada a ter o seu curso nesta terra mineira, até o fim dos meus dias.
E - E o Grande Hotel?
H A - Permaneci algum tempo hospedada no melhor hotel da cidade. Hotel dos políticos e de empresários! Depois, me transferi para a pensão de dona Nicolina Brandão, na rua Pernambuco com rua Cláudio Manuel, num quarto muito confortável. Tive oportunidade de relacionamento com outros hóspedes e isso facilitou a minha adaptação à cidade e aos costumes.
E - E o seu trabalho na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico?
H A – No dia seguinte, fui me apresentar para iniciar o trabalho. Chegando ao edifício, vi a placa: Escola Maternal – e um soldado em continência. Achei estranho, mas, em seguida, apareceu uma moça que estava saindo e fitando-me, aproximou-se: “Êtes-vous Madame Antipoff?” – “Oui, c´est moi-même.” “Venez par ici, je vous en prie. Je vais vous conduire à la directrice!” (A senhora é Madame Antipoff? Sim, sou eu mesma. Venha por aqui, por favor. Eu vou levá-la à diretora)  Mais tarde, fiquei sabendo que seria uma colega, a professora Lúcia Schmidt Casasanta. Veio em seguida a diretora Amélia Monteiro de Castro, nomeada em substituição ao diretor provisório, doutor Lúcio dos Santos.
E - Foram os primeiros contatos com o novo trabalho?
H A - Recebi o resumo semanal do horário das aulas de psicologia para três grupos de alunas e grande número de aulas práticas. Ela mostrou-me todas as dependências da escola. Fiquei conhecendo a professora Alda Lodi, e tantas outras professoras, Jeane Milde, Helena Paladini, Zilda Assunção, Maria Luiza de Almeida Cunha, Filocelina Matos, Fiquei conhecendo também a capela, onde diariamente era celebrada uma missa, pouco antes da primeira aula. Depois disso, o trabalho.
E - Pegou o seu novo ritmo de trabalho!
H A - Montei também o meu próprio ritmo pessoal. Ao chegar a casa, vindo do trabalho, ia me deitar às 21h30. Das 23 até as 4h, estudava e preparava as aulas. Dormia de 4 às 6h, quando me preparava para chegar à escola, às 7h. Pegava um bonde e descia na porta da escola. Tudo calmo. A cidade tinha 200 mil habitantes. Tive oportunidade de fazer amizade com o professor Arduíno Bolívar. Mais tarde, minhas relações afetivas com alunas e colegas foram muito amplas. Fui convidada para madrinha de casamento da aluna Alaíde Lisboa, que se casava com o professor José Lourenço de Oliveira. Encontrei colaboradoras e amigas, que duraram a vida inteira, como a Elza de Moura, Irene Pinheiro e outras. Fui superando dificuldades e abrindo novos horizontes de vida.
E - A senhora era a Madame Antipoff!
H A - E me tornei dona Helena para o resto da vida. Foi assim que me integraram a essa comunidade mineira.
E - De Mme Antipoff a Dona Helena! Uma grande transformação?
H A - Uma inesperada transformação em minha vida, cheia mesmo de mudanças e transformações. Tive que me adaptar sempre. A grande tese da vida foi adaptação. Assim foi a minha vida e a minha infância. Tive uma infância de burguesia russa.
E – Lembra-se bem da sua vida na Rússia?
H A - Tantas alegrias, tantas decepções, tantas amarguras e tantos sofrimentos. Nunca poderia me esquecer.
E - Teve formação aristocrática na Rússia?
H A - Pouco depois do meu nascimento, em 1892, na cidade de Grodno, na Rússia, meu pai, Wladimir Vassilevitch Antipoff, militar de alta patente, foi transferido para São Petersburgo, onde serviu como general, junto ao Czar Nicolau II. Tivemos uma vida confortável, em casa assobradada, com criados, governantas, professores de francês e de piano. Minha mãe, Sofia Constantinovna, de origem burguesa, era cuidadosa na formação das filhas. Eu e Zina, dois anos mais nova. Tânia ainda não tinha nascido. Tivemos uma boa base cultural.
E - Uma governanta francesa?
H A - Lembro-me de Mlle. Simone Beaulieu como nossa professora de francês e logo depois de Fräulein Gertrude Kauffman, no estudo do alemão. Nosso estudo de línguas estrangeiras começou muito cedo. Tive uma experiência interessante: aos 13 anos de idade, num período de férias, comecei a lecionar inglês para uma jovem, para ganhar algum dinheiro. Meu pai, quando soube, ordenou que devolvesse o dinheiro imediatamente.
E - E seu pai, promovido a general do exército, servindo na então capital São Petersburgo!                  
H A - E passamos a chamar a minha mãe de: la generala! Mas, esse período durou menos do que imaginávamos.
E - Sua vida teve outros caminhos?
H A - Antes de continuar, fomos em férias ao mar. Agora, com a nova irmã Tânia, já com  um ano de idade, fomos com tios e primos para um período no mar Báltico. Aí, fiz amizade com o meu primo Yacha, que ainda não conhecia. Levei livros e cadernos, mas a companhia do meu primo não dava tempo para os estudos. Por fim, senti que a vida era bela demais e que precisava viver e fazer relacionamento com as pessoas. Gostei do meu primo Yacha.
E - Foram momentos de encantamento!
H A - Algum tempo depois, Sofia Constantinovna resolveu se separar do marido e viver em Paris, levando as três filhas com ela. Já tinha se iniciado a grande emigração russa, ocasionada pelos focos de movimentos políticos. Havia tumultos e desordens generalizados, que brotavam em todas as partes. Em 1909, foi a primeira vez que saí da minha terra. Sofri muito com a separação do meu pai. Sofri com a mudança de hábitos na nova vida em Paris. Também sofreu muito a minha mãe, Sofia Constantinovna.
E - A vida em Paris era mais realista?
H A - Minha mãe passou a fazer trabalhos domésticos. La generala tinha agora de carregar balde de carvão para aquecimento em casa e subir escadas. A grande dama reduzida a mulher doméstica, sujeita aos encargos de dona de casa.
E - Realmente, tudo deve ter mudado!
H A - Em Paris, depois de tanta proteção familiar, estava eu entregue às minhas próprias opções universitárias. Tinha 16 anos de idade e com amplas oportunidades que a vida da cidade oferecia. Entretanto, era estrangeira russa, com as minhas vestimentas diferenciadas dos parisienses. Tinha que me adaptar.
E - E passou a descobrir Paris?
H A - Visitei o museu do Louvre, com uma colega. O Panteão de Paris, em homenagem a Napoleão. Admirei a pintura de Rafael. Cheguei à biblioteca pública para conhecer dados sobre homens ilustres.
E - Mas, e suas atividades universitárias?
H A - Pois bem! A mudança repentina para Paris me trouxe uma angústia porque o meu curso secundário e o Complementar Normal, feitos em São Petersburgo em 1909, só davam diplomas russos, não reconhecidos em outros países. Procurei me informar e na Faculdade de Ciências me sugeriram submeter-me a um exame de madureza, exame de equivalência entre o curso russo e o francês. Em junho realizaram-se esses exames com milhares de candidatos. Felizmente o meu nome estava entre os primeiros da lista dos aprovados. Agora, chegou a hora da decisão quanto a minha escolha profissional. Anteriormente, tinha pensado no magistério.
E - E decidiu?
H A - Antes disso, tinha que pensar mais um pouco. Em outubro de 1911 já estava matriculada na Sorbonne. Tinha em mira o curso de medicina. Estava entre estudantes do mundo inteiro. Passei a frequentar a biblioteca da rue Saint Jacques, onde semanalmente preenchia fichas de bons livros de autores ainda desconhecidos e me familiarizei com a vida na universidade. Entretanto, as aulas de anatomia e fisiologia me pareciam desinteressantes e comecei a procurar outras atividades.
E - Abandonou o curso de medicina?
H A - Preferi assistir às aulas do Colégio de France, cujo recinto era franqueado ao público. Ouvi aulas magistrais de Pièrre Janet e de Bérgson e senti que estava palpitante pela psicologia. Finalmente, bati às portas do psicólogo Alfred de Binet, cujas experiências no campo da educação já eram comentadas.  As portas estavam fechadas. Alfred de Binet tinha falecido três dias antes. Retornei, dias depois, e tive a oportunidade de encontrar o doutor Théodore Simon e me apresentei a ele, com o interesse de um estágio e fui incluída num grupo de estudantes orientados por ele.
E - E nesse estágio do professor Simon?
H A - Fundamental para a minha vida. Aí aprendi as novas técnicas de avaliação psicológica. Uma verificação estava sendo feita quanto a já famosa escala métrica de medida da inteligência de Binet, aplicada, desta vez, em crianças da escola maternal. E foi durante esse estágio que conheci o professor Edouard Claparède.
E - Foi uma grande oportunidade?
H A - Foi uma das grandes oportunidades da minha vida. Fui convidada ou fui escolhida, juntamente com uma colega, para trabalhar no Instituto de Ciências da Educação, em Genebra. Admirei o professor e médico, Edouard Claparède, desde o primeiro momento que o vi. Foi o meu mestre, administrador do Instituto Jean Jacques Rousseau. Foi um período áureo, apesar da guerra de 1914. Muitos jovens retornam a seus países e a situação se recrudesce em 1916. Estava plenamente integrada ao meu trabalho. Entretanto, pensava  na Rússia e antes de tudo, pensava em meu pai.
E - Grandes preocupações?
H A - Acompanhava tudo pelos jornais. Depois, as notícias se escassearam. Minha cabeça não estava disponível mais para o meu trabalho, em forma de entusiasmo e de integração. Senti que precisava fazer alguma coisa. Consultei a minha família e decidi me despedir do Instituto e do mestre Edouard Claparède, para ver o que se passava no meu país. Lutas internas e lutas externas contra os alemães. O povo russo estava dividido, fragmentado em seus ideais.
E - Reencontrou a família!
H A - Zina tinha ido para os Estados Unidos. Encontrei a minha mãe cheia de reclamações quanto ao abandono das filhas mais velhas. Lamentei a ausência do pai como chefe da família. Zina escrevia da América. De minha parte, decidi voltar à Rússia, mesmo sem as garantias de segurança. Os líderes comunistas estão movimentando o povo e incitando-o à revolução. Percebi que haveria de encontrar muitas dificuldades. Não enxergava uma saída imediata para a situação do meu país. Senti que poderia empregar as minhas pequenas economias nessa perigosa viagem. Foi nesse período que antecedeu a minha viagem que conheci um moço espanhol, Carlos Gonzalez Garcia.
E - Um namorado?
H A - Enquanto procurava documentos para liberar uma viagem a Rússia, encontrei, por acaso, o jovem Carlos Garcia, freqüentador assíduo do Boulevard Saint Germain. Quase diariamente era visto no Café Beauregard. Fiquei admirada pela sua simpatia, pela sua elegância e, sobretudo, pela sua beleza física. Muito gentil. Iniciamos uma conversa. No outro dia, encontramo-nos também por acaso. Depois, fiquei sabendo que ele teria relacionamento com a embaixada da Espanha e que poderia me ajudar a resolver a minha pendência diplomática. Chegou a visitar o nosso apartamento e a conhecer Sofia e Tânia. Convidou-nos para passar uns dias a beira mar, em Quimperlé, em direção a Brest. Fomos todos de trem. Um automóvel nos aguardava. Foi a primeira vez que a Taninha entrou num automóvel. Ficamos numa bela mansão de parentes do Carlos. Numa tarde, num passeio a Brest, longe dos familiares, passamos uma noite e ficamos noivos com alianças de ouro. No outro dia, Sofia abriu uma garrafa de vinho branco para comemorar. Foi um noivado curto. Descobri que Carlos fazia tratamento contra tuberculose há longo tempo e isso nos separou. Não foi esse o único motivo. Carlos, entretanto, dias depois, foi à embaixada de seu país e resolveu todas as pendências com relação ao meu passaporte. Isso foi tudo.
E - Depois disso, ficou legalizada a sua situação para viajar à Rússia?
H A - Retornei a Rússia a procura de Wladimir Antipoff. Depois de quarenta e oito horas de viagem, cheguei a Minsk. As estações estavam cheias de soldados e havia clima de guerra. Quando cheguei à fronteira, comecei a perceber os efeitos da desorganização e da desordem. Ninguém queria obedecer a ordens e a regulamentos. Em Minsk havia casas saqueadas, com portas e janelas quebradas. Uma carruagem arrebentada, parecendo que os ocupantes tinham sido assaltados, certamente massacrados. Homens e mulheres com aspecto doentio! Aparecem ratos na boca dos esgotos. Muitas pessoas com pernas ou cabeça enfaixadas. E o frio também chegando, embora ainda não fosse muito intenso.
E - Sentiu a desolação total!
H A - Tinha trazido apenas duas malinhas de Paris com o necessário, prevendo a dificuldade de carregar malas. Fui ao hospital central onde esperava obter informações do meu pai. Todos pensavam que eu fosse estrangeira pela minha indumentária. Admiravam-se quando eu falava o russo, normalmente. Não havia notícias. Tive que me hospedar numa pequena pensão para, no dia seguinte, reiniciar a busca de informações. Procurei uma repartição militar. Fui de porta em porta. Uma informação de que em Grodnovo havia um forte movimento militar. Fui para lá num trem de carga, sem alimentação, sem o mínimo de conforto, cheio de militares. Encontrava hospitais cheios de pacientes, entre funcionários e oficiais do exército, todos manifestando raiva e o ódio com o  povo esfomeado. Conversei com muitas pessoas. Histórias! Histórias! Nenhuma pista para o meu enigma. Percebi que não estava no caminho certo.
E - Nada de informações em Grodnovo?
H A - Apenas a fome e a desolação. Eu também estava faminta. Fiquei sabendo que em Smolensk, em maio, teria havido um grande movimento de revoltados, movimento do povo contra o regime e que o exército regular tinha sido chamado para entrar em ação. Pensei que poderia ser uma solução partir para Smolensk. Troquei um par de sapatos parisiense por um pedaço de carne e parti para lá, num trem de carga. As distâncias são grandes.
E - Mas a sua decisão também era grande!
H A - Dois dias de viagem. Felizmente, encontrei um oficial que me arranjou um lugar num vagão de passageiros. Visitei todos os hospitais e casas de saúde. Todos cheios de mutilados pela guerra. Listas e listas de feridos. Finalmente um nome parecido, meio apagado. Finalmente, uma informação de que havia um militar graduado, oculto numa casa. Encontrei-a e não me permitiram entrar. Com dificuldade, simulei que estava fazendo levantamento de feridos. Encontrei um homem, em estado de inconsciência. Com dificuldade, reconheci. Era o meu pai. Precisava fazê-lo voltar à vida.
E - Foi difícil superar essa fase!
H A - Vim de Paris para salvar o meu pai. Encontrei-o muito doente. Estava magro demais, sem tratamento adequado. Com bravura que eu mesma desconhecia em mim, consegui interná-lo no hospital militar. Depois de quarenta e cinco dias, obtive autorização para ele poder já deixar o hospital. Agora, era levá-lo para um clima mais ameno na Crimeia, e o general, agora passou a ter o nome suposto de Sergei Ivanovitch Chilicov.       
E - Um objetivo alcançado!
H A - Ficamos na cidade de Simferopol, à beira do Mar Negro, em casa de parentes, enquanto se restabelecia. Depois, numa pequena casa, mas com conforto e sem riscos maiores que pudessem prejudicar a sua saúde. Assim, retornei a Petersburgo para cuidar da antiga casa, invadida e saqueada, para apossar do que restava. Fiquei só e tive que procurar trabalho.   
E - Novamente na sua antiga casa!
H A - A antiga moradia de Wladimir Vassilevitch em Petersburgo não apresentava segurança, já que tinha sido saqueada na ausência dos proprietários. Encaixotei o que pude e despachei para ele. A situação da cidade estava cada vez pior. Os militares não recebiam salários e debandavam para o lado oposto e tornavam-se pequenos líderes distritais. O povo começava a fazer estoque de alimentos e os comestíveis começavam a desaparecer.      E
E - Resolveu ficar algum tempo em Petersburbo?
H A - Resolvi trabalhar. Estava sozinha, sem amigos. Consegui um emprego. Arranjei acomodação no antigo prédio do Ministério do Interior, já extinto. Meu trabalho era cuidar de adolescentes sem teto e sem rumo. São em número cada vez maior. Isso no princípio do ano de 1916. Chegavam novos adolescentes a cada dia. sem pais e sem abrigo. Esse fenômeno estava ocorrendo em todas as cidades. Assim, de um momento para outro, tive que comandar um grupo enorme de delinqüentes. Procurava as autoridades para criar um centro de triagem. Apliquei minhas técnicas de psicologia para conseguir o ajustamento desses jovens. O que não foi fácil. Definição das lideranças para a formação de grupos e assim  me envolvi e não via o tempo passar e nem percebi o aumento das dificuldades. Tive que buscar apoio entre outros profissionais, principalmente os jornalistas.
E - Foi nessa época que conheceu o jornalista Victor Iretzky?
H A - Nessa ocasião fiz amizade com esse jornalista Victor Iretzky e acabei me casando informalmente com ele. Era também escritor, com grande poder de observação. Escrevia imitando camponeses e sabia lidar com todas as classes sociais. Ele tinha 35 anos, portanto, dez anos mais velho que eu. Pensamos numa casa numa região rural e o romantismo nos fez imaginar uma vida de felicidade. Victor tem séria crise de asma. Depois, o pior. A situação do país vai de mal a pior e, pouco a pouco os bolchevistas passam a dominar a situação. Jovens desocupados carregam bandeiras com o novo símbolo da foice e do martelo. Cantam hinos marciais, impregnados de ódio e de violência. Tudo paralisa, inclusive os trens, a pequena indústria. Vem a pilhagem, o saque, o pânico. A sujeira impera e as aves de rapina ficam à espreita para entrarem em ação.
E - E o czar?
H A - Circulavam notícias de que a família do czar já tinha transposto a fronteira. Outras, ao contrário, diziam que o czar Nicolau II estava preso, pronto para ser julgado. Havia comentários de que toda a família real, inclusive a mulher dele, a alemã, seria fuzilada sumariamente pelos crimes cometidos.
E - E o seu trabalho, como ficou?
H A - Quebraram todas as instalações do antigo prédio do Ministério do Interior. Os meninos se debandaram, pois nem alimentação existia mais. Era outubro de 1917 e essa é a data da insurreição das massas e da revolução russa. Daí pra frente, nada se podia prever. Foi o fim do regime czarista que, durante séculos, dominou a Rússia.
E - Teve que aceitar as imposições do regime comunista?
H A - É difícil imaginar o que passei no período de 1917 a 1921. Terminada a Grande Guerra, com a vitória dos Aliados, o exército russo não podia voltar triunfante para o seu país. São recebidos como inimigos do povo, porque são adeptos ao velho regime. Muitos desertam ou nem atravessam as fronteiras porque são tratados com ódio pelos irmãos comunistas. O que cresce é a fome e o desespero das populações de modo geral. Há a tendência de sair da cidade e fazer reservas de tubérculos, raízes, talos ou folhas encontradas ou furtadas no campo. Catam-se pinhas e sementes de espécies de vegetais. Frutinhas do mato. Resinas de árvores para saciar a fome. Armadilhas para pegar algum coelho. Vale tudo! E foi nessa época que meu filho nasceu, 31 de março de 1919. Forte ao nascer mas pouco depois teve febre escarlatina, a carência de alimento e a precariedade da habitação. Tinha inevitável magreza e procurei recursos por todas as partes. Todos estavam procurando as mesmas coisas e ninguém encontrava. Levei-o a Escola de Medicina, onde foi exposto como amostra de raquitismo. Isso não comovia ninguém. Finalmente, encontrei uma camponesa robusta que tinha perdido o filho e pôde amamentar o meu filho Daniel. Foi a sua salvação!
E - E onde moravam?
H A - No albergue. Victor Iretzky sonhava com uma casinha no campo. Um dia, encontramos uma que seria o nosso sonho. Depois dos arranjos e da limpeza geral, transferimos a nossa residência. Foi apenas um dia. Victor não voltou para casa, no dia seguinte, após o trabalho.  Depois, fui informada na redação de que ele tinha sido preso pela polícia. Por que foi preso sem culpa e sem julgamento? Ninguém sabia e ninguém tinha coragem de procurar saber. A mesma sorte é reservada aos que são “demasiado curiosos”. Onde estava? Fui á polícia e a todos os órgãos policiais. Nada. Somente se fosse a Moscou e procurasse a “Tcheka” – polícia especial que informa sobre presos políticos. São mais de mil quilômetros. Como fazer essa viagem?            
E - Era uma situação realmente lamentável!
H A - Tive que trabalhar na cidade e morar naquela casinha de subúrbio, com meu filho pequeno e uma jovem que me auxiliava. Meu marido e eu tínhamos plantado uma horta e tudo crescia e nos dava alimento. Um dia, os cavalos de militares pisotearam a horta. Nada restou. Fiquei indignada. Outro dia, fui retida pela polícia ao transpor a barreira depois das 22 horas e Daniel passou uma noite sozinho na casa. Tudo são acontecimentos deploráveis.
E - O filho ficava sozinho em casa?
H A - Tinha uma moça de dezesseis anos que ficava com ele. Mas eu tinha que trabalhar no centro da cidade, com responsabilidades cada vez maiores. Um dia, o comissário do distrito educacional me comunica que vão chegar mais 53 jovens, aprisionados por estarem em bandos perdidos nos parques da cidade. Vinham escoltados por soldados armados. Delinqüentes, como eram chamados. Foram tosquiados como cordeiros e entregues à nova “educatrice française”, com forte tom de ironia. Mas eu tinha um plano elaborado e apresentei-o, para discussão. Ele gostou e passamos a um diálogo mais cordial. Passei a novo modelo de trabalho.
E - Convivia com os delinqüentes?
H A - Todos eram produto da situação política e social. Estavam perdidos e queriam um apoio, uma ajuda, uma orientação. Confiança sempre tem mão dupla. Se não se oferece, não se recebe. Um desses jovens, perdido na cidade desde os 12 anos de idade, conviveu com meu filho Daniel, protegendo-o e acolhendo-o, por mais estranho que possa parecer. Pobre Freddy, como me lembro de você!
E - E como convivia no novo regime político?
H A - A Rússia soviética, no afã de depuração de todos os que não aceitavam o novo regime leninista, passa também a cometer abusos. Abusos – era o termo empregado. Mas eu estava dentro de um projeto, independente de qualquer disposição ideológica. Queria salvar esses jovens. E Victor era um preso político, encarcerado há mais de um ano, sem eu ter notícia do seu paradeiro. Cansei de percorrer todas as repartições e delegacias policiais a procura de notícias. A opinião generalizada é que poderia estar em Moscou.
E - E decidiu ir a Moscou?
H A - Preparei-me para a viagem, ausentando-me por 15 dias, deixando meu filho com sua ama. Tinha que saber onde ele estava. Quando cheguei a Moscou, que tinha se transformado na capital do país, procurei a “Tcheka”. Encontrei uma multidão junto ao portão de entrada, ainda bem antes da hora marcada para a sua abertura. Com muita dificuldade, descobri que ele realmente estava ali encarcerado. Fiquei sabendo, também, que dentro de três meses encerravam-se os interrogatórios e que ele poderia ser condenado ou exilado para a Alemanha. Aguardando a sentença, e que seria transportado a Petersburgo, após esses interrogatórios.   
E - E esse prazo foi cumprido?
H A - Efetivamente, cinco meses depois, Victor Iretzky está entre os intelectuais presos e devolvidos a Petersburgo. Como uma liberalidade, podia receber uma visita quinzenalmente. Por isso e para isso me preparei para ir à Prisão Central, embora não tivesse conhecimento da decisão das autoridades.
E - Pôde então visitar o marido?
H A - Num domingo, dia 26 de novembro, é a data marcada para a visita, das 13 às 15 horas. Antes da hora marcada, estava eu com meu filho Daniel, junto ao portão. Quando ele foi aberto, uma multidão de pessoas aflitas penetrou na prisão, para ver os entes queridos. Vislumbrei Victor à distância. Não podia entender o que ele falava porque tantas pessoas falavam ao mesmo tempo e um largo balcão nos separava. Coloquei Daniel sobre o balcão e enfiava bilhetes no bolso dele. Desse jeito, conversamos. Em casa, pude ler os bilhetes. Ele realmente seria exilado para a Alemanha.
E - E isso aconteceu?
H A - Em fevereiro de 1922, Victor parte para Berlim. Eu e Daniel ainda ficamos em Petersburgo, até conseguir dinheiro para as passagens. Pretendíamos viver juntos em Berlim.
E - Permaneceria em Petersburgo?
H A - Em princípio, sim. Mas, recebi um convite para executar um trabalho em Viatca. Boas condições, clima melhor. Melhores condições de abastecimento. Ofereciam  moradia, numa escola residencial, espécie de patronato para adolescentes difíceis. Nessa Estação médico-pedagógica fui admitida como psicóloga. Pelo menos estava assegurada a parte de alimentação e moradia. O governo queria mostrar que estava cuidando da juventude. Recebi carta branca para o trabalho e Daniel tinha outros meninos para conviver. E Viatca situa-se no limite dos continentes europeu e asiático. Está bem perto da cadeia dos Montes Urais, na linha reta oeste-leste.
E - Uma mudança radical?
H A - Para melhor, com mais liberdade para o trabalho e mesmo para viver. Tinha ação direta com os jovens, montei o laboratório de psicologia e coordenei as atividades de tantos outros professores e pedagogos. Tive trabalhos em outras cidades da região o que me obrigava a viagens constantes. Numa dessas viagens, tive que me ausentar por mais de um mês. Daniel sentia a minha ausência, mas adaptava-se bem com outras pessoas.
E - Mudanças e mudanças! Quanto tempo permaneceu em Viatca? 
H A - Por mais de quinze meses, até que recebi uma carta de Victor, me comunicando que tinha conseguido dinheiro para as passagens e queria que fôssemos para Berlim. Era o nosso sonho. Era chegado o momento de sair da Rússia soviética. Era preciso, agora, conseguir o visto para a viagem e uma justificativa junto ao governo para uma saída temporária do país. De malas prontas, voltamos a Petersburgo para os preparativos finais. Vendi um piano, que estava guardado em casa de amigos e outros pequenos pertences. Nada mais me ligava a Rússia. Vendi tudo que tinha.
E - E o visto para a viagem a Berlim?
H A - Consegui que o professor Netschaieff , com quem já tinha trabalhado, me desse um documento no qual esse cientista me recomenda uma visita a um centro modelo de recuperação de deficientes físicos na Alemanha. E esse documento valeu. Foi então marcada a partida para o dia 25 de novembro de 1924. Na data marcada, uma grande tempestade impediu a saída do navio. Entretanto, no dia seguinte, foi dada a partida. Havia muitos outros passageiros que também se despediam do seu país, a procura de novas oportunidades de vida. Pela segunda vez, deixei o meu país. Não pensava que essa seria a última visão que guardaria da minha terra.
E - Era o afastamento da pátria, mas prestou serviços relevantes a seu povo!     
H A - Prestei assistência e orientação a jovens anônimos, supostamente delinquentes, pois estavam abandonados. Também deixei a minha experiência de profissional com outra visão de mundo. Escrevi textos, artigos que publiquei. Um deles, “O nível mental das crianças em idade pré-escolar”, em russo, criou algumas dificuldades com autoridades,  pois revelava que as crianças filhas de intelectuais e nobres eram mais capazes do que as filhas de proletários, partidários da revolução. Um comissário de Leningrado chegou a fazer uma denúncia, como se eu fosse partidária e elemento prejudicial ao regime.   
E - Uma vida nova em Berlim?
H A - No final do mês de novembro do ano de 1924, chegamos ao porto de Stettin, em Berlim, sobre o Báltico. De longe, avistamos um homem de capa, acenando para nós. Era Victor que nos aguardava. Ele trazia uma penca de bananas bem amarelas para Daniel, que não conhecia frutas tropicais. Logo depois, de trem, muito limpo e organizado, seguimos para a nossa nova morada. Tudo é novidade para nós. Em Berlim, sente-se logo um regime disciplinado e de ordem perfeita.
E - Uma cidade organizada!
H A - Agora eu era Frau Antipoff! Tudo era admiração, mas não entendíamos a língua. As longas avenidas! Nada faltava. O povo expansivo e barulhento. Uma cidade reconstruída depois da guerra. Belos letreiros luminosos. Uma nova vida que se iniciava. Por isso mesmo, buscamos nos adaptar a esse convívio já que tínhamos perdido a cidadania russa, como todos os que abandonam o país.
E - Sentiu muitas diferenças?
H A - Muitas diferenças. Primeiramente, não entendia a língua, depois, os costumes muito diferentes. Os horários são respeitados quase com exagero. Procurei escola para Daniel, junto a refugiados russos. Ele ficava isolado, com dificuldade de fazer amizades. Encontrou um cachorro vira-lata que o acompanhava sempre. Eu procurei emprego, mas o sistema educacional era orientado com procedimentos especiais. Finalmente, consegui organizar uma escola para jovens filhos de refugiados. Foi um bom trabalho em colaboração com a participação de duas amigas.
E - E a família?
H A - A família ficou alojada num apartamento de um quarto, muito amplo, é verdade, mas insuficiente para proporcionar privacidade e conforto para nós. Resolvi colocar Daniel num internato, nas imediações. Achei tudo difícil. O clima muito frio e brumas diariamente. Pensava em encontrar um novo caminho, uma nova decisão a tomar.
E - Sempre com um novo projeto?
H A - Victor era um  exilado desde 1922 e tinha limitações para conseguir um bom emprego. Escrevia artigos, publicados em suplementos dominicais. Era autor de livros de ficção que não podiam ser publicados na Rússia por questões políticas. No meu caso, não teria grandes oportunidades de trabalho. Victor tinha nobreza em seu modo de ser e de se compor. Sempre bem vestido. Era moreno, com sobrancelhas grossas, escuras. Era ucraniano, natural de Kiev. Seus livros eram considerados perigosos ao regime soviético. Ele era observador e conseguia tirar conclusões. Depois de um ano de vida juntos, percebeu que eu não estava me adaptando à mentalidade alemã.   
E - E tomou uma nova decisão?
H A - No dia três de janeiro de 1926, eu e Daniel estávamos chegando à estação ferroviária de Genebra. Não podia deixar passar as oportunidades e nem me mortificar dentro de frustrações. Ou agora, ou nunca.
E - Nova oportunidade em Genebra?
H A - Na estação, nos esperando, estava o meu mestre, professor e amigo, Edouard Claparède. A princípio, me hospedei com a senhora Baranoff, de origem russa. Ela nos recebeu muito cordialmente. Uma semana depois, Daniel já estava matriculado na famosa escola “Maison des Petits”, educandário criado pelo professor Claparède e onde eu já tinha lecionado anteriormente. Daniel não sabia a língua ainda, pois, até os cinco anos adotou o dialeto russo. Mais tarde, ele recebeu uma adaptação de alemão. Agora, precisava aprender também a língua francesa. Eu comecei a trabalhar no famoso Instituto Jean Jacques Rousseau, lecionando Psicologia da Criança e Técnicas Psicológicas. Pouco tempo depois, eu passava a assistente do professor Claparède, na Universidade de Genebra.
E - Foi um período de grande desenvolvimento do instituto?
H A - Era uma fase de grande importância para o instituto. Grandes mestres da psicologia deram cursos aí, convidados e coordenados pelo professor Claparède. Posso citar alguns deles, Pièrre Bovet, Jean Piaget, Mira y Lopez, Richard Melli e Leon Walther. Participantes do mundo inteiro acorriam a esses cursos. No meu caso, tinha mais facilidade de comunicação porque dominava a língua francesa, o inglês, o alemão e, sobretudo, o russo, com fluência total. Genebra tornou-se o centro das “Sciences de l´éducation” e dos estudos psicológicos no período de 1926 a 1928.
E - E a sua família?
H A - Minha mãe continuava em Paris. Victor estava em Berlim, sempre adoentado. Por isso, eu mandava algum dinheiro pra ele. Quanto a meu pai, esqueci-me de dizer. Em 1924, pouco antes da minha despedida da Rússia com destino a Berlim, empreendemos uma viagem, eu e Daniel,  até Simferopol, na Crimeia, para rever meu pai e despedir-me dele. Era agora um refugiado político, vivendo com muitas dificuldades financeiras. O general Wladimir Vassilevitch, primeiro aluno da Academia Militar da Rússia, era agora um reformador de calçados para a sua sobrevivência. Estivemos alguns dias com ele, e no último dia, fez um par de botas para Daniel, muito reforçadas e bonitas. Depois disso, nunca mais o vi. Mais tarde, recebi uma comunicação de que ele tinha falecido.
E - Foi nessa oportunidade de sucesso em Genebra que a senhora teve o convite para um trabalho no Brasil?
H A - Recebi uma proposta do cônsul do Brasil, mas encontrei alguns problemas pela frente. Primeiro, percebi que o professor Claparède tinha ficado um pouco magoado. Depois, senti que era imprópria a minha saída nesse momento de grande desenvolvimento da psicologia. Passei então a proposta ao meu colega Leon Walther.
E - Mas o governo do estado de Minas Gerais não desistiu da proposta!
H A - Realmente! Um ano depois, recebi outro convite pra vir para o Brasil. Mediante as informações favoráveis do professor Leon Walther, eu resolvi aceitar. Foi uma grande decisão. Era um contrato para dois anos de trabalho. Nunca pensei que esse contrato fosse se estender por toda a minha vida.  
E - E encontrou um campo de trabalho todo disponível para a senhora?
H A - Abracei um povo que me recebeu de braços abertos. Comecei a trabalhar sem parar, até o dia 9 de agosto de 1974, dia da minha despedida final. Foram 45 anos de vida dedicados exclusivamente à educação e ao desenvolvimento humano. Não pensem que achei que tinha concluído a minha obra. Deixei tanta coisa por fazer, em benefício de quem tanto esperava que eu o fizesse. 
E - E a Sociedade Pestalozzi?
HA - Tantas coisas chamaram a minha atenção nestas terras brasileiras, mas uma delas me abalava profundamente. Eram as crianças portadoras de alguma deficiência mental, principalmente. As famílias procuravam esconder essas crianças no fundo das casas, como se envergonhassem delas. Por isso, tentei reunir um grupo de pessoas de influência político-administrativas, profissionais liberais, professores e tivemos a iniciativa de criar um modelo de assistência e acolhimento a essas crianças.
E -  Foi o primeiro passo?
H A - Isso aconteceu em 1932, em Belo Horizonte. Encontrei mãos colaboradoras como de Henrique Marques Lisboa, Otávio de Magalhães, Ester Assunção, Imene Guimarães, Zilda Assunção, Lincoln Continentino, José Lourenço de Oliveira, Guilhermino César, Orville Conti, Fernando de Magalhães Gomes, Monsenhor Artur de Oliveira, padre Álvaro Negromonte, Mario Vilhena, João de Deus Costa e tantos e tantos outros. Inicialmente, pensávamos em organizar um granja-escola para amparar meninos infradotados, crianças excepcionais que o estado de Minas Gerais não tinha lugar que pudesse abrigá-los.
E - A granja-escola foi a ideia inicial?    
H A - Conseguimos um terreno no quarteirão entre as ruas Timbiras e Ouro Preto e, de um dia para a noite, levanta-se um barracão improvisado. Este foi o núcleo inicial do Instituto Pestalozzi. Começamos a disponibilizar a receber crianças excepcionais.
E - Crianças excepcionais!
H A - Não havia ainda um termo exato para definir essas crianças e passamos a chamá-las de “excepcionais”, evitando-se dar uma conotação injusta para essas crianças. Foi uma criação minha e não sabia se ela poderia ser adotada no país. Assim, depois da nossa instalação, o Secretário da Educação do estado de Minas Gerais, doutor Noraldino Lima, inaugurava outras salas e colocava à disposição professores para auxiliar no desenvolvimento dos trabalhos.
Tornei-me presidente desse instituto, e depois de articulações com técnicos e professores do Rio de Janeiro, propus o modelo da Sociedade Pestalozzi do Brasil, estendendo conceitos e atitudes pelo território brasileiro.
E - E o pequeno jornaleiro?
HÁ - Naquele tempo, crianças vendiam jornais pelas ruas. De madrugada, com frio, mal-agasalhadas, estavam essas crianças vendendo jornais. As bancas eram poucas e os meninos gritavam as manchetes. Criamos a Casa do Pequeno Jornaleiro, lembrando dos tempos em que na minha pátria tantos meninos andavam perdidos, sem lar e sem comida.
E - Recebeu visitas dos amigos europeus?
H A - Muitas visitas. Em 1930, esteve em Belo Horizonte o meu mestre, professor Edouard Claparède. Minha mãe, Sofia, também aqui esteve, no ano de 1932, e permaneceu mais de um ano, mas não se adaptou à vida da cidade. Recebi também, no período de férias, a visita do meu filho Daniel, que tinha ficado na França. Depois, em 1934, eu mesma estive na Europa, revendo amigos e familiares. De volta à América, em 1936, recebi notícias da morte de Victor Iretzky, falecido aos 54 anos de idade. Vesti-me de preto em sua homenagem, por alguns meses. Também, em 1937, representei o Brasil, no 1o.Congresso Internacional de Psicologia e Psiquiatria Infantil, realizado em Paris. Hospedei-me no apartamento da minha mãe e tive oportunidade de encontrar velhos amigos. Aconteceu, entretanto, que tive que submeter-me a uma delicada intervenção cirúrgica o que não permitiu o meu regresso imediato.
E -E o filho Daniel continuava na Europa?
H A - Em 1938, quando ele já contava 19 anos, resolvemos que ele viesse para o Brasil. Essa decisão estava também relacionada com a possibilidade de ele ser convocado para a guerra, na França. Passou a residir comigo, fazendo amizades, dando aulas de francês e depois, estudando português, submeteu-se ao exame de madureza, obtendo o certificado de segundo grau. Matriculou-se no curso Técnico de Agricultura em Viçosa (MG), onde, tempos depois, arranjou uma namorada, Ottilia, na cidade vizinha de Visconde do Rio Branco e casou-se com ela. Depois de uma experiência de administração rural na cidade de Patos de Minas, resolveu matricular-se no curso de Filosofia da UFMG e posteriormente, enveredou-se para o campo da psicologia. Também Ottília já estava envolvida com a psicologia desde os tempos em que morava na cidade de Visconde do Rio Branco e acabou graduando pela Universidade Católica.
E - E a Fazenda do Rosário?
H A - Em 1939, a primeira turma do Instituto Pestalozzi concluía o curso primário e era nosso pensamento ter uma propriedade rural, para atividades mais amplas e continuadas para assistência aos excepcionais. Tínhamos 120 contos de réis, em dinheiro. Uma boa quantia! Iniciamos a procura de um terreno apropriado e encontramos na região metropolitana de Belo Horizonte, na cidade de Ibirité. Compramos um sítio de 40 alqueires. Um sonho! Aqui será o dormitório, aqui as salas de aulas, ali, uma casa de repouso, mais além as oficinas e as hortas comunitárias. E me diziam: “mas isso aqui é mato puro, dona Helena! E um cerrado! É campo aberto!” E eu respondia: “Hoje! Amanhã, não será! E assim, pouco a pouco, fomos construindo uma cidadezinha rural, com indústrias, oficinas, escolas, granjas, empresas agrícolas, clube recreativo, biblioteca, museu, casa de repouso, capela, com o propósito de melhor servir o homem do campo, numa sociedade culta, próspera e harmoniosa. Assim nasceu a FAZENDA DO ROSÁRIO – um centro de vida comunitária, amplo e diversificado, referência para assistência e orientação educacional e profissional. E realizamos também um projeto de formação e desenvolvimento de professoras rurais.
E - E o sonho foi concretizado?
H A - Tudo! Perdão, não tudo. Nossos sonhos não terminariam assim, tão facilmente. Sei que tivemos sucesso total em tantas atividades que diariamente eram realizadas. Uma atrás da outra. Eu tinha tantos projetos em mente e sempre estava recebendo ajuda de tantas pessoas abnegadas, pessoas que abandonavam tudo para conseguir nossos ideais. Levantamos um projeto de assistência e orientação aos jovens intelectualmente bem-dotados. Não pude continuar. Tantos jovens incompreendidos que veem e sentem mais dos que os outros e se cansam de acompanhar os mais lentos. Isso também era fundamental. Fui em frente. Nunca fiquei sabendo o que seria um obstáculo. De mãos dadas com meus colegas e amigos venceríamos tudo.
E - E o primeiro laboratório de psicologia da América Latina?
H A -  Foi um sonho a mais que realizamos. Aliás, uma das minhas primeiras idealizações e realizações que trouxeram grandes resultados para a Escola de Aperfeiçoamento. Deu o rumo certo ao ensino em Minas Gerais. Tantas publicações! “Crianças excepcionais”,“Desenvolvimento mental da criança”, “Formação das classes” e tantos outros. E tantas ex-alunas que se projetaram no campo da educação: Naytres Rezende, Zilda Assumpção, Zilá Frota, Elza de Moura, Irene Lustosa, Maria Angélica de Castro, Maria Augusta Cunha e tantas outras!
E - Também a Escola Normal Rural!
E -  Foi um projeto ambicioso que teve a participação do governador Milton Campos e do secretário da educação, Abgar Rennault. Um acontecimento inédito no Brasil. A formação da professora para a região rural. Um nome não pode ser esquecido nessa empreitada. Dona Olga Coelho Ullman! Foi uma realização que deu bons frutos. Uma realidade para o Brasil desenvolver.
E - E o seu último projeto?
H A - Percebi, pelos estudos e pelas observações quanto a resultados das crianças e dos adolescentes que, muitos jovens bem-dotados intelectualmente, muitas vezes, não alcançavam os resultados que se esperavam deles. Por isso, junto com vários colaboradores, elaboramos o projeto para apoio e orientação a jovens superdotados.  Criamos a ADAV – “Associação Milton Campos para desenvolvimento e assistência a vocações de bem-dotados”, com sede própria na cidade de Ibirité (MG). Deixei tanta coisa sem concluir... Mas sei, hoje sei, que teve o seu papel relevante no apoio às mentes brilhantes.
E - Sem fazer relatório sobre sua vida, sei que a senhora não teve casa própria.
H A - Casa própria? Tivemos na Rússia, em Petersburgo. Nunca mais precisei investir dinheiro em propriedades para mim. Meus bens são coletivos. Meu salário como professora da Faculdade de Filosofia, estava investido nas pessoas que precisavam dele. Meu filho conseguiu uma casa, num bairro residencial de Belo Horizonte, onde teve seus filhos e netos. Eu, sozinha, pensava em pessoas que estavam me esperando. Foi isso.
E - Sei que a senhora recebeu homenagens, prêmios, medalhas de tantos brasileiros e mineiros.
H A - Recebi mais do que merecia. Mesmo assim, cidadã honorária de Ibirité, simples como ela própria, me satisfaz junto com outras que agradeço de coração. Recebi o título de cidadã brasileira em 1951, em ato do presidente Getúlio Vargas. Já me sentia brasileira, desde o dia que aqui cheguei, em 1929. Recebi braços abertos que me abraçaram durante toda a minha vida e que me depositaram na minha cidade de Ibirité, Minas Gerais, onde permaneço pela eternidade.
E - Dona Helena! Nada mais ouso pedir. Gostaria de uma palavra final?
H A - Sim. Gostaria sim... Levo tantas lembranças de minha vida abençoada. Deixo minha família cumprindo seus desígnios, seus mistérios. Todos felizes. Minha família se estende normalmente a todos os que precisaram de mim na sua caminhada. Daniel me disse um dia que eu não amava a minha família, que eu não amava ninguém. É verdade? Amei a todos, igualmente, sem distinção egoística. Estava presente, de coração aberto, junto a todos que precisassem de ajuda, mesmo sem pedir. Amei os meus colegas de trabalho, meu filho, minha nora, meus netos, meus excepcionais e, sobretudo, a humanidade.
E - E a humanidade, por sua parte, agradece e reverencia.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTIPOFF, Daniel I. Helena Antipoff, sua vida/sua obra. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1975
ANTIPOFF, Daniel I. Entres dois continentes. Belo Horizonte: (?),1997 
ANTIPOFF, Daniel. Excepcionais e talentosos – os escolhidos. Belo Horizonte: 1999
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA HELENA ANTIPOFF – CDPHA. Coletânea de obras escritas de Helena Antipoff. Vol. I e II. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1992  
BOLETIM DO CDPHA, Fundação Helena Antipoff, complexo educacional da Fazenda do Rosário: Ibirité (MG), 1997

sábado, 25 de agosto de 2012

FERNÃO DIAS PAIS - ENTREVISTA VIRTUAL


Bandeirantes/Bandeiras – Uma cidade em movimento! Expedições fundamentadas em decisões e incentivo de poderosos reis de Portugal que, de longe, comandavam exércitos de voluntários que, por conta própria, se embrenhavam pelas trilhas e pelo verde deserto.

Cada passada tua era um caminho aberto!
Cada passo mudado, uma nova conquista!
E, enquanto ias, sonhando o teu sonho egoísta,
Teu pé, como um deus, fecundava o deserto!
Olavo Bilac - O caçador de esmeraldas


Autor: Rogério de Alvarenga

APRESENTAÇÃO
Uma expedição exploratória pelo interior do país, no século XVII, enveredando-se por matas inóspitas, cheia de mistérios e lendas, cheias de febres, de índios e animais selvagens, de répteis das mais desconhecidas espécies, seria uma temeridade organizar. Em seguida, que se poderia encontrar? Que custo-benefício poderia prever? E o abandono da família, para sempre, talvez! O povo mineiro reverencia Fernão Dias Pais, enaltecendo o seu feito heroico de devastar nossas matas, abrindo caminhos, fundando povoados, plantando roças, iniciando a criação de animais. Por tudo isso, encontramos em Ibituruna, seu primeiro pouso, sua primeira parada técnica, também o primeiro lar da pátria mineira. Em Sumidouro, na região de Pedro Leopoldo, estado de Minas Gerais, Fernão Dias Pais começa a implantar um novo povoado. Aí permanece por cerca de sete anos. Sempre em busca das esmeraldas! Um sonho intranquilo, um sonho que poderia ser realidade, não fossem tantas dificuldades e intempéries na sua jornada. Encontrou, entretanto, a glória de ter devastado o caminho das minas de ouro que, mais tarde, iriam abastecer de riquezas o povo paulista. A mineração foi o tema do século XVIII, graças aos caminhos abertos por Fernão Dias Pais. Eis alguns momentos de sua Bandeira, relatados por ele próprio, em entrevista especial.    

ENTREVISTADOR - Bandeirante Fernão Dias Pais! Os seus dias estão distantes, mas os seus passos estão marcados nas terras do estado de Minas Gerais! Podemos abrir uma conversa franca e amiga com o senhor, sobre a sua grande expedição?
FERNÃO DIAS PAIS - Sempre estive de passagem de um lugar para outro, cumprindo o meu objetivo maior. Mesmo assim, aqui estando arranchado, posso abrir meu coração, como sempre o fiz na minha vida.
E - Com a alma aberta ao peito, com as emoções fervilhando, minha tarefa se tornará mais emocionante e mais pungente. Podemos ser mais diretos nas questões?
FD - Na minha vida atribulada, não tive tempo de pensar em desviar uma conversa. Sempre falei e falo o que tenho na cabeça, na hora, sem procurar esconder coisa alguma.
E - Melhor assim. Então, a primeira questão que me desponta à mente: o senhor não se considerava velho demais para organizar e comandar uma expedição tão grande e perigosa pelo mundo desconhecido nas matas sem fim?
FD - Jovem - sempre fui e velho – um dia serei. A minha experiência e a minha coragem foram emblemas para a minha credibilidade
E - Mas, a sua idade?
FD - Eu tinha apenas 66 anos de idade quando parti de São Paulo para revelar o que havia atrás das montanhas e montanhas, matas e matas. Parecia o infinito! Todos queriam saber o que havia atrás delas, muitos ousavam, mas quase nunca voltava­­­m.
E - Atrás das montanhas e das matas havia o mistério?
FD - Havia o mistério e as lendas. Alguns se aventuraram, em pequenos grupos organizados, subindo e descendo montanhas sem fim. Alguns voltaram, outros se perderam no emaranhado das trilhas, ou perdidos no caminho da volta. As notícias e as histórias aumentavam.
E - O senhor se compara ao descobridor da América, Colombo ou ao navegador Pedro Álvares Cabral?
FD - Por que não? Um mar de águas desconhecidas ou um mar de matas intransponíveis? Lá, os tubarões, a fúria dos ventos e das tempestades. Aqui, as feras, os índios, as chuvas e as enchentes! As tempestades, os raios e os trovões!
E - E de quem eram essas matas intransponíveis?
FD - Em princípio, de ninguém, ou de quem chegasse primeiro. Depois, da Coroa Portuguesa, a quem se prestava obediência imediata.
E - Podia explicar melhor?
FD - Expedições podiam ser organizadas e autorizadas. Muitas partiam sem ordem, sem autorização legal. Mas, com o tempo, foram-se organizando grupos bem estruturados, com registro e autorização oficial do rei de Portugal. Formavam-se as Bandeiras, num estilo quase militar, incentivadas, estimuladas pela Coroa Portuguesa, na busca de riquezas.
E - Que riquezas?
FD - Ora! Ora! Sempre havia lendas e lendas de que o ouro jorrava, de que as pedras preciosas iluminavam os caminhos com o seu brilho e seu esplendor.  Só faltavam homens capazes de buscá-las onde elas estivessem dormindo. O ideário do povo na época era encontrar uma civilização milenar e rica, bem estruturada, com os templos cobertos de ouro e pedras preciosas. Riquezas e mais riquezas!
E - Pode-se comparar com o sonho tecnológico de se chegar à Lua, de se chegar até Marte? Desvendar a crença de que há vida nos planetas?
FD - Quase isso! Mas tudo aqui estava a nosso alcance, em nossas mãos ou na continuidade dos nossos pés, nos limites das terras exploradas, na continuidade das propriedades cultivadas. Além do horizonte estava o desconhecido. Por que não ir até lá? Quanto tempo ainda essas terras iriam permanecer desconhecidas?
E - Faltavam recursos técnicos e por assim dizer, faltavam homens de coragem?
FD - Mais ou menos isso mesmo. Faltavam empreendedores maiores. Por isso, fui chamado. Não pense que a minha Bandeira tenha sido um ajuntamento de pessoas com um objetivo incerto. Nada disso.
E - Bandeira? Uma Bandeira?
FD - Sim! Uma Bandeira! Uma expedição devidamente organizada, nos moldes militares, princípios rígidos e objetivos determinados.
E - O senhor mesmo organizou essa expedição de exploração do interior do país?
FD - Sim! Eu mesmo! Era pessoa de posses e de experiência militar, no comando de vários empreendimentos oficiais. Tive confiança de investir nessa aventura. Tinha feito meu nome, tinha conceito público e credibilidade.
E - O senhor sempre gostou de aventuras?
FD - Sempre fui um homem de labor insano. Desconhecia o medo e estava sempre pronto para desafios. Além disso, sempre fui curioso em desvendar os mistérios das matas e das distâncias. Meu braço forte e meu espírito de ousadia frente ao desconhecido!
E - Daí o seu desejo de dessas aventuras?
FD - Recebi carta do Governador Geral, de Salvador, com convite formalizado para a organização da expedição, datada de 18 de maio 1671. Em 20 de outubro respondi, aceitando. Obtive, então, autorização com empenho do Rei Afonso VI de Portugal.
E - Mas o senhor partiu de São Paulo no dia 21 de julho de 1674, não é verdade? Consequentemente, gastou três anos em preparação?
FD - Não se pode imaginar, hoje, as dificuldades da época. Uma Bandeira, uma responsabilidade imensa! Uma Bandeira era uma cidade em movimento. Os seres humanos são frágeis diante da natureza e precisam de alimentos, remédios, agasalhos. Armas, equipamentos! Animais de carga e de montaria. Os integrantes das expedições precisavam ter em mente, ainda, os objetivos da missão. Precisavam ter uma decisão pessoal para embarcar rumo ao desconhecido, sem previsão de regresso fácil e imediato. A única certeza de que se podia dar aos acompanhantes eram as dificuldades, as privações, o desconforto, o perigo.
E - Mas os integrantes das bandeiras deviam ter compensações, pelo menos uma visão de resultados pessoais?
FD - Se não houvesse uma visão de benefícios pessoais não haveria nenhuma inscrição voluntária. A população crescia e já não havia mais atividade profissional disponível. A oportunidade de se conseguir riqueza fácil era a ideia fixa da época na capitania de São Vicente Havia, ainda, a lenda de ITABERABUÇU - SABARABUÇU, as lendas do ELDORADO, da famosa lagoa de VAPABUÇU!
E - E o povo acreditava nessas lendas?
FD- Todos acreditavam. Eu mesmo sempre via, à minha frente, uma montanha de esmeraldas, resplandecente e verde, luzindo cores e riquezas. O meu sonho compulsivo eram as esmeraldas. Itaberabuçu significa mesmo montanha grande que resplandece.
E - É SABARABUÇU?
FD - Era a mesma Itaberabuçu, a terra encantada! Rica em ouro e prata! Civilização milenar! Riquezas espalhadas pelos regatos, pelas matas, pelas encostas e pelos vales. Terra em forma de paraíso.
E - E VUPUBAÇU?
FD - Ou Vapubuçu! Uma lagoa imensa, com as margens de prata e pedras preciosas. Uma das maravilhas ocultas da humanidade. Pisar ao seu redor seria um bem da natureza. Quem não teria construído no seu ideário uma fantasia de enfrentar o desconhecido para alcançar um paraíso, aqui mesmo nesta terra?
E - E as inscrições de voluntários foram aparecendo?
FD - Os capitães e os chefes de grupos eram convidados. Os voluntários brancos dispunham dos seus bens, das suas posses, armazenando condições para a longa viagem. Os índios eram obrigados a se incorporarem às expedições. E havia ainda os negros escravos para os serviços braçais.
E - Os índios eram obrigados a se incorporarem às expedições?
FD - Os índios aprisionados eram mantidos para serviços de patrulhamento e de guias. Prestavam bons serviços, conheciam caminhos e trilhas, sabiam enfrentar animais selvagens, répteis e, além disso, sabiam caçar. Por isso, aprisionados, domesticados, eram bons companheiros.
E - Índios aprisionados?
FD - Sim! Havia o aprisionamento de índios! Uma das missões das bandeiras era o aprisionamento de índios para trabalhos usuais. Tornavam-se escravos brancos, por assim dizer. Eram imprescindíveis nas patrulhas. Eram os guias. Quase sempre nômades, conheciam as matas e sabiam lidar com elas. Conheciam  frutas e raízes. Podiam estabelecer contato com outras tribos, conheciam a flora medicinal e podiam se livrar dos animais selvagens com mais coragem.
E - O senhor sabe que esse objetivo de prear os habitantes da terra, os donos da terra, é considerado um ato repulsivo?
FD - Vivíamos o ciclo de prear índios!
E - Tudo são águas passadas, mas as Américas, cada uma a seu jeito, têm muito que lamentar por isso, não é verdade?
FD - Seria infantilidade pretender ocultar que o bandeirantismo não se incorpora ao panorama de violência que caracterizou o apossamento das Américas pelos europeus, pode dizer um historiador de época futura.
E - O crime foi do tempo e não dos europeus, poderia dizer hoje, em irônica justificativa.
FD - Talvez tenha razão, embora eu não ter percebido isso na minha época.
E - Sabe-se nos dias avançados que “o ciclo do aprisionamento do índio é uma das mais cruéis manchas da história brasileira e para a qual não há nenhuma desculpa”, como mais tarde disse alguém.
FD - Nunca permiti uma ação corretiva. Sei que centenas morreram por doença, fome, cansaço nessas expedições. Nenhum índio na minha companhia foi maltratado.
E - Peço me desculpar por esse desvio de rota na nossa conversa. Como disse, são águas passadas. Entretanto, o senhor teve que prestar juramento para assumir o comando da Bandeira?
FD - Sim. Tive que prestar juramento perante o Capitão-mor da capitania de São Vicente, na saída de São Paulo, no dia 21 de julho de 1674.
E - Todos os seus auxiliares imediatos estavam presentes?
FD - Todos eles. Matias Cardoso era meu imediato. Meu filho Garcia Rodrigues Pais, meu genro Borba Gato, Francisco Dias, meu sobrinho, demais capitães e frades acompanhantes. Além deles, meu filho bastardo José Dias. Quarenta brancos e centenas de tupis. Não posso informar o número certo.
E - Uma grande responsabilidade embrenhar-se nas matas com tão grande número de pessoas.
FD - A história há de julgar o meu destemor. A minha equipe de capitães, os peões, os meus bravos soldados acompanhantes, formavam um só corpo militar, imbuído de princípios e regulamento quase sempre verbais, prontos para enfrentar situações adversas com a natureza e mesmo na aplicação de normas internas disciplinares para o bom relacionamento.    
E - E que rumo tomaram?
FD - Como disse, partimos de São Paulo no dia 21 de julho de 1674, em direção a Taubaté, depois a Guaratinguetá e, na Mantiqueira, enfrentamos a garganta do Embaú. Era dia após dia, sem descanso e, como disse, a nossa expedição era uma cidade em movimento. Depois, atingimos Passa Quatro, Pouso Alto, Caxambu, Baependi, Ingaí para, finalmente, chegar a Ibituruna, onde permanecemos durante o período das águas.
E - Esse roteiro não foi planejado, não é verdade?
FD - Sim, não sabíamos o que iríamos encontrar no trajeto diário. Há pessoas que julgam que fizemos outro itinerário para chegar a Ibituruna. Mas, para esclarecer melhor esse ponto, pode realmente ter havido pequenas alterações, mas não havia essas localidades ainda. Nossa Bandeira foi plantando roças, povoados. Os nomes foram surgindo e não havia placas demarcadoras dessas localidades por onde nós passávamos. Apenas as trilhas ficavam.
E - Quanto tempo deve ter gastado nessa primeira etapa da viagem?
FD - Chegamos a esse local, que chamamos Ibituruna ou Ibitiruna, uma serra negra, na segunda metade do mês de setembro de 1674. Gastamos, pois, dois meses de viagens continuadas.
E - Esse primeiro arranchamento tornou-se histórico?
FD - Sim! Uma paisagem maravilhosa, com a natureza se abrindo em flores com a chegada da primavera. Aí, nesse local, Ibituruna, é considerado O MAIS ANTIGO LAR DA PÁTRIA MINEIRA.
E - Hoje, informo ao senhor que o ex-Governador do Estado de Minas Gerais, no ano de 1974, Rondon Pacheco, prestou-lhe uma homenagem muito carinhosa. Fixou uma placa e um monumento especialmente erigidos com os dizeres:

1674 – 1974 – I B I T U R U N A - PRIMEIRO POVOADO MINEIRO FUNDADO PELA BANDEIRA DE FERNÃO DIAS PAIS – HOMENAGEM DO ESTADO DE MINAS GERAIS NAS COMEMORAÇÕES DO TRI-CENTENÁRIO DE SUA FUNDAÇÃO – GOVERNO RONDON PACHECO.

FD - Retorno meu olhar a esse passado distante, quando ainda estava cheio de entusiasmo pela minha ousada jornada pelo interior do território do atual estado de Minas Gerais. Relembro Ibituruna, a serra negra, no meu primeiro pouso, na minha primeira parada para plantação de roças e construir benfeitorias. 
E - Permaneceu em Ibituruna algum tempo?
FD - Permanecemos em Ibituruna possivelmente seis meses, até que o período de chuvas passasse e as águas dos rios baixassem um pouco. Aí ficou o corpo da Bandeira, fazendo benfeitorias e plantando roças. Aí ficaram alguns peões, dando continuidade às benfeitorias e roças plantadas. Estávamos já a quinhentos quilômetros de São Paulo. Ainda tínhamos um bom caminho pela frente.
E - Que destino tomou?
FD - Em março de 1675, deixando Ibituruna, transpusemos o divisor de águas do rio Grande e São Francisco, chegando ao vale do Paraopeba, - água barrenta – água rasa – descendo até São Pedro do Paraopeba, hoje Belo Vale.
E - E depois?
FD – Finalmente, nesse período, chegamos a um lugar que chamamos Sumidouro, hoje, região de Pedro Leopoldo. Nesse local, procuramos nos estabelecer para pesquisar as redondezas, nas nossas buscas minerais.
E - No Sumidouro – Pedro Leopoldo – permaneceu algum tempo mais.
FD - Sim. Aí arranchamos. Aí ficamos por quase sete, isto é, até por volta de 1680, nas proximidades do rio das Velhas – Usimií – com tempo para pesquisar a região, atingindo até Ribeirão do Carmo, com a descoberta dos primeiros sinais de ouro disponível.
E - Foi um longo período. Foi a segunda pátria da cultura mineira? E as esmeraldas?
FD - Até então não vimos esmeraldas, a não ser no meu sonho e nos meus propósitos. Trabalhamos muito no Sumidouro, uma bela região fértil. Achei que podíamos ficar mais tempo nesse local. Foi um período de observação e de grandes expectativas. Passamos por belos momentos e, depois, porque não dizer, por trágicos momentos que gostaria de apagar da minha memória. 
E - Sim?
FD – Estávamos sem resultados e em situação de perda total. Decidimos rumar para o norte, com os recursos recebidos da minha mulher, vendendo suas últimas propriedades, ouro e prata de suas filhas. Em desespero, levantamos acampamento. Com sacrifícios redobrados atingimos Itamarandiba – pedregal miúdo – e, Serro Frio. Finalmente, Itacambira – pedra ramificada, bifurcada.
E - A Bandeira já não estava completa nessa ocasião!
FD - É verdade. Matias Cardoso me comunicou que estava de retorno a São Paulo. Que fazer? Velho amigo, companheiro, meu ajudante mais próximo. Tive que concordar. Com ele voltaram os frades. Que posso fazer? Meus argumentos foram em vão. Posso levar um cavalo ao rio, mas não posso obrigá-lo a beber. É o destino. Estávamos, nessa ocasião, a dois mil quilômetros de São Paulo, de acordo com a minha previsão.
E- Em Itacambira houve acontecimentos relevantes?
FD - Passamos por momentos de indecisão. Estávamos arranchados, pesquisando minerais pelas cercanias, fazendo benfeitorias e plantando roças. Surgiram dificuldades pela incompreensão, pela monotonia, pelo cansaço, pelo desconforto, pela fome. Mataram-se até os cachorros. Fome generalizada. Nada disso seria surpresa para nós. Mas um grupo resolveu protestar. Protestar, decidindo retornar para São Paulo, imediatamente, querendo também levar mantimentos e armas que, para nós, já eram reduzidas.
E - E a rebelião?
FD - No nosso vocabulário não existe a palavra rebelião. Desistir? Nunca. Em frente, na busca do nosso objetivo: as esmeraldas. E sabe o que esse grupo de rebeldes decidiu? Assassinar o chefe da Bandeira, para não haver impedimentos.
E - Como o senhor ficou sabendo?
FD - Logo, vieram me contar. Decidi, naquele mesmo momento, que o chefe dessa rebelião seria condenado à morte. E sabe quem era o chefe da rebelião? O meu próprio filho José Dias Pais. Era filho bastardo e muito amado. Tive que cumprir o juramento que fiz. Foi a minha decisão.
E - E depois? Foi uma decisão ou uma condenação?
FD - Quando saí de São Paulo não imaginava perder nem uma das batalhas. Infelizmente, não posso deixar de confessar que uma dor profunda e uma tristeza sem fim tomou conta de mim, tomou conta do meu corpo, do meu coração, dos meus sentimentos mais profundos. Entretanto, perdi batalhas, mas não saí para perder a guerra. Foi uma decisão irrevogável de um chefe de uma expedição em desespero. Sei que os companheiros ficaram estarrecidos, mas cumpri e ordenei o enforcamento.
E - Lamento ter feito o senhor retornar o pensamento para momentos tão conturbados. Sinto muito!
FD - Todos nós sentimos demais. A minha mão no cumprimento da decisão foi muito pesada e sentida por todos. O silêncio pairou como nuvem ameaçadora e ninguém teve mais palavras nesse dia.
E - Compreendo.
FD - Continuamos as nossas pesquisas minerais pela redondeza. Que fazer? Temos que encontrar novamente a rotina do trabalho.
E - Mas foram premiados com as primeiras esmeraldas?
FD - Alguns dias depois, encontramos um veio de pedras verdes maravilhosas. Não resisti e dei um grito para os companheiros. Borba Gato deu dois tiros para o alto. Minhas mãos se encheram de pedras verdes. Um momento de êxtase. Eu sabia! Eu sabia!
E - Que providências?
FD - Catar pedras verdes e colocá-las com carinho nos nossos embornais. Pedras grandes, brilhantes e pedras pequenas mais coradas. Tudo tem valor para a nossa glória. Como descrever esse momento? Cumpria pesquisar mais as cercanias e estender nossas vistas pelo caminho de volta. Agora sim! Podíamos retornar!
E - E mais? Alegria incontida?
FD - Realmente. Aí encontramos pedras verdes em boa quantidade. Finalmente enchi minhas mãos com as benditas esmeraldas, razão da minha expedição e coroamento de tudo quanto imaginei de sucesso. Borba Gato, meu genro, deu mais tiros ao alto e nos abraçamos em plena comemoração dessa ocorrência tão aguardada.
E - Mas era o momento das comemorações!
FD - Claro que sim. Ajuntamos o que pudemos em sacos especiais. Pedras grandes e pequenas. Dois ou três sacos bem dispostos nas cargas, em regresso.
E - Finalmente em regresso a São Paulo?
FD - E, no regresso ao lar, os passos são sempre mais largos. Tínhamos que passar pelo Sumidouro e, dali, seguir nosso caminho para São Paulo.
E - Foi na chegada à Quinta do Sumidouro que a febre o pegou?
FD - Era a febre maleita. A “carneirada” como diziam. Garcia, meu filho muito amado, preparou as beberagens. Nada aliviava a minha tremedeira e finalmente, não resisti, justamente à vista da minha Quinta do Sumidouro.
E - Que providências foram tomadas?
FD - Daí pra frente, não posso dizer mais nada com a precisão das minhas palavras, sempre corretas. Falaram-me em embalsamamento do meu corpo, à maneira dos índios. Colocado meu corpo em cova rasa e fogueira por cima. Depois, meu corpo teria sido colocado numa caixa. Não posso confirmar. Entretanto, ao atravessar o rio das Velhas, a canoa que me transportava não resistiu ao peso e naufragou. Minhas pedras estavam juntas em grande peso. Perdemos tudo!  Garcia se pôs em desespero e permaneceu no local por vários dias. Encontrou o saco das pedras, mas meu corpo, só foi encontrado em local muito abaixo do rio, vários dias depois, a grande distância.
E - Nesses dias, já no Sumidouro, chega o fidalgo castelhano. Mas pode dizer alguma coisa sobre esse fidalgo, D. Rodrigo Castel Blanco?
FD - Não é mais do meu tempo. Chegou junto a nós, entretanto, esse fidalgo que portava carta da Coroa Portuguesa, designando-o governador de todas as minas encontradas e por encontrar. Eu teria me assustado com essa carta. Era um petulante dominador, sei bem. Depois de todo nosso trabalho e de todo nosso sofrimento!
E - Ficou sabendo dos acontecimentos?
FD - Sei que Garcia Rodrigues entregou-lhe todas as pedras verdes que trouxemos de Itacambira, lavrando e transferindo termo de posse. Sei que também Borba Gato, de temperamento mais agressivo, não teve a tranquilidade para suportar a petulância desse nobre fidalgo castelhano.
E - E essas pedras verdes chegaram a São Paulo e a Portugal?
FD - Tenho a certeza de que sim.  Não poderia imaginar que tal fato não ocorresse como coroamento de tanto sacrifício e tanta obstinação.
E - E a qualidade dessas pedras?
FD - Sempre foram pedras lindas, verdes, reluzentes. Não fiquei sabendo o destino delas.
E - Eram esmeraldas?
FD - Para mim, sempre foram esmeraldas da melhor qualidade e pureza, pelo seu brilho e pelo seu esplendor. Aos meus olhos sempre foram esmeraldas e ainda as vejo luzindo, ofuscando meus olhos.
E - Esmeraldas ou turmalinas?
FD - Todas verdes e maravilhosas, ostentando a beleza escondida no seio da terra brasileira, no mais recôndito do seu ser. Para mim, sempre foram esmeraldas!  
E - Que sejam esmeraldas ou turmalinas, não importa. E Borba Gato se desentendeu com D. Rodrigo? Ficou sabendo?
FD - Fiquei, sim, dias depois. Não o culpo por isso. Talvez eu mesmo teria feito a mesma coisa que ele fez. Em luta corporal, D. Rodrigo levou a pior. Borba Gato matou-o, pois, em meu nome. São acontecimentos ocorridos sem a minha presença, infelizmente.
E - O senhor deve ter falecido com 73 anos de idade, no ano de 1681, pois nasceu em 1608?  
FD - É verdade. Com todas as dificuldades da vida rústica e precária, tive uma vida de trabalho durante setenta e três anos.
E - Sinto muito por esses acontecimentos. Consta, entretanto, que seus restos mortais estão depositados no mosteiro de São Bento, em São Paulo?
FD - Nada posso confirmar. Seria bom que a lápide conjugada com minha esposa Maria Garcia Rodrigues Betim estivesse junto a mim e disponível para a recordação dos meus feitos e da minha disposição para novas descobertas minerais. Por sete anos vivemos distantes um do outro. Talvez seja apenas um gesto de carinho dos meus conterrâneos paulistas, colocando-nos juntos no descanso eterno.
E - Finalmente, agradecendo a franqueza e a sinceridade de suas palavras, que mensagem gostaria de transmitir a seus conterrâneos paulistas?
FD - Para eles, uma pequena palavra bastaria: honrei  as tradições do meu povo pela bravura e pela obstinação! Deixo uma palavra de agradecimento por terem acreditado em mim para uma expedição memorável pelas matas, pelas montanhas e pelos rios do sertão desconhecido, que durou sete anos. Agradeço as providências do meu irmão Padre João Leite, intercedendo junto às autoridades a favor da minha esposa Maria Rodrigues Garcia Betim, empobrecida pela minha coragem e ousadia desvairada. Não posso deixar de abençoar a estrada BR Fernão Dias, assim denominada em minha homenagem, pelo meu primeiro percurso. Meus olhos se voltam para o seu grande destino, facilitando os viajantes, os bandeirantes da modernidade.
E - E para os povoados, vilas e cidades fundadas pela sua Bandeira? São agrupamentos de seres humanos que têm a sua paternidade!
FD - Sei que meu filho Garcia Rodrigues foi sempre prestigiado pelos mineiros. E ele prestou serviços ao estado de Minas Gerais traçando os rumos do CAMINHO NOVO, constituindo hoje a Estrada Real. Sei que achou ouro e teve prosperidade e consideração especial na região de Pitangui. Sei que Borba Gato sempre foi estimado e considerado em Sabará. Sei que achou muito ouro e teve vida próspera. Lanço o meu olhar com um leve sorriso de aprovação. Vejo-os em abraço fraterno, vigilantes seguros dos destinos dos velhos povoados, hoje tão prósperos e hospitaleiros. Tenho as maiores recordações da minha Quinta do Sumidouro. Finalmente, tenho a certeza hoje de que o nosso sacrifício não foi em vão! As esmeraldas verdes transformam em campos floridos de grupamentos humanos!
E – Agradecemos as suas palavras e esses ensinamentos para reflexão.Expressamos os sentimentos mais puros em reconhecimento pela participação no desbravamento do sertão brasileiro. Nas terras de Minas Gerais seu nome está ligado a esmeraldas e esmeraldas, a Fernão Dias Pais.





Bibliografia
ABRITTA, Maria da Conceição Parreiras. A trajetória de vida e luta do bandeirante Fernão Dias Pais. Belo Horizonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, vol. XXIII, pag. 93 a 100. 2000.
ARANHA, Patrícia. Minas nasce do sonho da montanha preciosa. Belo Horizonte: Estado de Minas, 1º.de outubro, 2000.
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Roteiro da bandeira de Fernão Dias Pais. Belo Horizonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, vol. XVII, 143-164, 1977
FERNANDES, Raymundo Nonato. Nas origens de Minas Gerais. Belo Horizonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, vol. XXIII, 101 – 113, 2000
LEITE, Mário. Paulistas e mineiros, plantadores de cidades. São Paulo: EDART, 1961
NUNES, Ismaília de Moura. Fernão Dias, plantador de cidades. Belo Horizonte: Suplemento especial da Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1982
PÉRET, Luciano Amedée. Ibituruna, primeiro povoado mineiro. Belo Horizonte: Suplemento especial da Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1982
TAUNAY, Afonso de E. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: Imprensa Oficial, 1945
VASCONCELOS, Diogo. História antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974
VASCONCELOS, Salomão. O fim de Fernão Dias e as dúvidas sobre o seu jazigo. Belo Horizonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, vol. IX, 156 – 166, 1962.
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