quarta-feira, 9 de agosto de 2017

ENTREVISTA VIRTUAL COM PADRE EUSTÁQUIO


É o missionário holandês que dedicou sua vida a aliviar o sofrimento dos seus semelhantes, em fervorosas súplicas à Divina Providência. Faleceu em Belo Horizonte, em 1943 e, pelas suas virtudes e pela sua dedicação, deu natural nome a uma região da cidade, onde foi glorificado e sepultado.  Santo Padre Eustáquio foi beatificado pelo papa Bento XVI, em 2005. Seu sepultamento foi trasladado para a Igreja dos Sagrados Corações, que ele iniciou a construir.




Entrevistador -Venerável Padre Eustáquio! Pelos Sagrados Corações, peço, antes de tudo, a sua bênção e a sua proteção.
Padre Eustáquio – Em nome de  Deus, e pela minha Congregação dos Sagrados Corações, será abençoado e protegido.
E – Graças a Deus! Amém!
PE – Graças a Deus!
E – Padre Eustáquio! Sua vida foi uma missão? A entrega de uma vida?
PE – Verdadeiramente, assim é. Quando um sacerdote decide entregar-se por uma causa a favor da humanidade, significa que ele tomou uma decisão para toda a sua vida. É a predominância da fé nos seus objetivos de vida.
E – E o senhor decidiu entregar a sua vida por uma causa de Deus e da humanidade!
PE – Isso mesmo! Eu, por minha vez, decidi a minha missão. O que eu iria prestar em serviços aos meus semelhantes? Foi uma decisão muito pensada e sofrida. Ter que abandonar a minha pátria, meus pais, meus familiares, todos e meus amigos fraternos. Sou de uma família de onze filhos. Eu era o oitavo. Nós nos amávamos muito.
E – E pesou mais a sua vontade de servir a Deus?
PE – Antevi a minha missão, entregando minhas mãos, meu corpo inteiro e, além disso, a minha própria alma, para ajudar pessoas em conflito, onde quer que estivessem.
E – E como surgiu essa força, essa convicção?
PE – Quando jovem estudante na minha pátria, Holanda, caiu em minhas mãos um livro sobre a biografia de um missionário belga da nossa Congregação, Padre Damião Veuster.
E – Sim! E o que tinha de especial esse padre Damião Veuster?
PE – Quando li os relatos do trabalho dele, da abnegação e entrega total â sua missão, houve um abalo no meu peito e eu me curvei fervorosamente.
E – E o que tinha feito o Padre Damião?
PE – Tão pouco aos olhos de muitos, ajudando pobres miseráveis, sem destino, que talvez não tivessem nenhum valor, sob o ponto de vista dos poderosos.  Tinha para Deus. Padre Damião seguiu por um caminho que o levaria à santidade. O missionário belga se entrega em ajudar uma população enferma na ilha do Havaí. Na época, um reinado carente, com alto índice de enfermidades, desde gripe à sífilis contraída ou hereditária, até a lepra.
E – E padre Damião entrou como voluntário?
PE – Nesse reinado, por comando das autoridades, os leprosos foram isolados numa ilha afastada, ilha de Molokai. Mais de 600 pessoas em estado de desespero. E famintas. Ilha de Molokai. O Havaí é hoje uma unidade incorporada aos EUA mas, na época, predominavam as enfermidades e o abandono.
E – Foram isolados, numa ilha afastada?
PE – A Royal Board of Health fornecia alimentos, mas não tinha condições de fornecer também medicamentos. Uma infelicidade generalizada. Todos condenados.
E – E Padre Damião? 
PE – Em 1865, foi colocado em missão na ilha do Havaí. O Monsenhor Louis Maigret, vigário apostólico, que protegia os leprosos, designou Padre Damião para assistir esses leprosos com os sagrados sacramentos e com os atos religiosos. Uma população segregada. Damião sabia que tal designação seria uma sentença de morte para ele.  Depois de muito pensar, Damião solicitou a sua designação para servir a Deus nessa ilha de Molokai.
E – E Padre Damião seguiu para Molokai?
PE – Damião chegou à ilha em 1873 e foi apresentado pelo Monsenhor Maigret como um pai para todos os moradores - “viverá e morrerá com vocês”. Isso foi. Damião assumiu essa paternidade total. Trabalhar sem saber por onde começar. Abriu tantas frentes de trabalho que nem imaginava resultados. Passou a construir um pequeno hospital, com a colaboração de um médico que tinha contraído a doença e se refugiou na ilha. Logo depois, uma capela, com a ajuda das mãos feridas dos leprosos. Uma  população revoltada. Nada podia ser diferente. Era uma população agressiva que matava por um punhado de arroz. Paz, apaziguar e manter clima de harmonia em princípio. Assim, incorporou a figura de pai, amigo, confidente, professor e representante de Deus. Foi realmente um pai para todos. Tornou-se mesmo mais que um pai e um irmão, procurando amenizar o sofrimento tanto quanto possível.
E – E aí morreu?
PE – Sim... mas antes disso, recebeu do Rei Kalakaua, do reino do Havaí, o título honorífico de Cavaleiro Comandante da Real Ordem. E, no dia que a Princesa Lydia Lili´uckalarti visitou a ilha para entrega da comenda, ela se comoveu tanto que não conseguiu ler o seu discurso. Padre Damião nunca usou essa medalha recebida.
E – Houve reconhecimento quanto ao seu trabalho?
PE – Sim... Nos EUA e na Europa – Hoje tem o título de Patrono Espiritual dos Leprosos do mundo inteiro. Era Jozef de Veuster, da Congregação dos Sagrados Corações, nascido em Tremelo, Bélgica, em 1840.
E – Um santo?
PE – Sim... Um santo. Dez anos depois de chegar a Molokai, num dia, colocou os pés numa bacia de água fervente. Nada percebeu. Foi constatada a contaminação da lepra. Ainda viveu por mais algum tempo sem abandonar a sua missão... Faleceu em 1889, nessa mesma ilha de Molokai. Era um missionário da minha Congregação, que tanto me emocionou e inspirou.   
E – Padre Damião foi assim admirado pelo senhor?
PE – Tornou-se meu ídolo inspirador. Tomei a decisão na minha vida, aliviar enfermidades e propor paz e harmonia entre as pessoas. Meu lema seria SAÚDE E PAZ. Vi que eu também poderia prestar algum serviço à humanidade. Qualquer pequena ajuda. Vi quão pequeno eu era diante do Padre Damião, diante da sua força e diante da sua convicção. Eu não era nada.
E – E o senhor era um jovem estudante na Holanda, nessa época.
PE – Eu era Humberto Lieshout, nascido em 1890, em Aarle Rixtel, Holanda. Iniciei o noviciado canônico em Tremelo, na Bélgica. Nessa época, adotei o nome de Eustáquio. Fiz votos de pobreza, castidade e obediência, como religioso da Congregação dos Sagrados Corações. Fiz votos perpétuos em 1919, após cursar Filosofia e Teologia na congregação e fui ordenado sacerdote.
E – Aí começa a sua vida sacerdotal?
PE – Sim. Inicialmente, comecei a prestar serviços em pequenas comunidades na região de Roterdam. Depois, atendendo refugiados belgas, vítimas do final da Primeira Grande Guerra de 1914/1918, até que fui designado para trabalhos na América do Sul.
E – E finalmente, o Brasil?
PE – Em 1925, chegamos ao Brasil. Éramos três sacerdotes, eu e os Padres Gil van den Boorgart e Padre Matias van Rooy. Dirigimo-nos a cidade de Uberaba, em Minas Gerais, a convite do Bispo Dom Antônio de Almeida Lustosa. Assumimos a pastoral do santuário episcopal e das paróquias de Nossa Senhora da Abadia, na cidade de Romaria da paróquia de São Miguel de Nova Ponte e Santana de Indianópolis, todas da Arquidiocese de Uberaba. Fiquei como vigário paroquial com prioridade para os serviços de atendimento às comunidades da região.
E – Uma comunidade rural de modestas aspirações?
PE – Uma comunidade afetiva e acolhedora. Aprendi muito e tive que me adaptar às circunstâncias. A atividade pastoral em Romaria, no início foi muito difícil. Pouco a pouco fomos nos acertando. Talvez uma descrença generalizada. Visitava os enfermos e pessoas que podiam me acolher com simpatia. Distribuímos fé e amor a Deus. Se as pessoas não vinham a mim eu iria a elas. Consegui mais do que esperava e reuni esforços em várias comunidades distantes. Montava a cavalo e viajava por todos os lados. Tive sucesso. Prestei alivio a pessoas em conflito físico e espiritual. Tudo era distante e as comunicações eram precárias.
E – Consta que o senhor era ágil, dinâmico e acolhedor. Atendia até mordida de cobra?
PE – Isto aconteceu. Comunidade rural, sem médicos ou medicamentos. Estava eu, cavando um local a procura de areia especial para algum aproveitamento a dores, quando fui chamado para dar os últimos sacramentos a um rapaz da região que tinha sido mordido por uma cobra e estava em estado terminal. Peguei o cavalo e fui disparado para o local. Manoel estava sem ar, perna roxa, suando frio, praticamente sem consciência. Lembro-me bem! Pedi que todos se afastassem do quarto. Tirei um bisturi da minha bolsa de couro e fiz um incisão no local da marca dos dentes da cobra. Perna roxa e inchada. Jorrou um sangue preto. Limpamos tudo. Coloquei minha boca nesse local e aspirei uma boa quantidade de sangue. Manoel, um belo rapaz, foi salvo, graças à vontade de Deus.
E – Mas o senhor já tinha dado bênçãos milagrosas a outros paroquianos em dificuldades e doenças.
PE – Sempre procurei atender e pedir a Deus por eles. Muitas vezes fui atendido.
E – Mesmo assim, depois de tanto trabalho, a Congregação aceitou a sua transferência para a cidade de Poá, em São Paulo.
PE – Meu voto de obediência exigia esse caminho diferenciado. Mas a população de Romaria não permitiu. Tudo fez para impedir a minha saída. Até o bloqueio de estrada de acesso. Finalmente, uma festa de despedida. E o caso de um crime abalou a cidade. Saí discretamente mas deixando a população entristecida, sei disso.
E – E o que encontrou em Poá?
PE – Tudo diferente. Uma paróquia nova, grande e confortável. Comunicação rápida. Tudo diferente em termos, pois a população era sofrida pelo trabalho nas indústrias e como hortigranjeiros. Atendia de forma diferenciada. Comecei a visitar enfermos e pessoas em dificuldades. Houve, em pouco tempo, uma procura desproporcional às minhas possibilidades de atendimento, principalmente pela água milagrosa que eu trouxera da cidade de Lourdes - França. Depois, pela fonte construída em homenagem a Lourdes. Houve curas a meu pedido. Houve distúrbio e pessoas de outras regiões acorriam às minhas bênçãos e ao meu atendimento. As autoridades eclesiásticas não queriam isso. Obrigaram-me ao recolhimento. Impediram que eu aparecesse para os paroquianos. Tudo tão estranho e desconfortável para mim. Isso fez com que pedissem meu afastamento. Passei um tempo de desconforto e de humilhação. Estava mesmo em desespero. Por que Deus me daria esse castigo? Meditei, viajei, sofri em desamparo. Talvez me afastar do país? Portugal me acolheria? Finalmente, fiz uma carta a meu amigo, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva, Arcebispo Metropolitano de São Paulo, relatando meu estado de desespero e humilhação e disposto a continuar o exercício paroquial em qualquer outra comunidade do estado de modo como ele julgasse apropriado. Dom Gaspar respondeu que seria inviável a minha permanência no estado, para evitar aglomerações e atividades que poderiam ocasionar até advertências do Sumo Pontífice e coisas assim. Estaria eu livre para ir para onde quisesse.
E – Era manifestação das autoridades eclesiásticas e não as do povo.
PE – Sim, mas o povo era a causa. Pensei que pudesse ser até uma contradição entre as autoridades que buscam o povo e depois, tenta afastá-lo.
E – E o senhor?
PE – Meu voto de obediência foi preservado. Procurei caminhos. Todos se fecharam. Eu era então um sacerdote rejeitado. Que fazer da minha vida? Por que Deus me deu um poder e ao mesmo tempo me tolhe e me angustia? Chegou finalmente a ordem para que eu me afastasse imediatamente, mesmo considerando que era tarde da noite quando recebi a comunicação. Obediência mesmo sem ter tempo de acabar de ler o meu breviário. Assim mesmo.
E – Que decisão?
PE – Que decisão? A quem recorrer? Não podia também prejudicar a imagem da minha Congregação. E meus amigos? Apareceu o Padre Gil. Confabulamos e traçamos planos em várias tentativas de acerto. Mais erros e decepções. Finalmente, uma luz. Padre Gil articulou-se com o Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, Dom Antônio dos Santos Cabral e me foi oferecida uma paróquia de subúrbio da cidade, ao redor de um hospital de tuberculosos, o Sanatório Alberto Cavalcanti.  Uma capela distante, de difícil acesso num bairro despovoado. Além de tudo com uma lista de recomendações. Aceitei tudo de pleno coração. Encontrei-me em casa.
E – Nova vida?
PE – Assim foi. Iniciei minhas atividades em Belo Horizonte, em 9 de abril de 1942,  e agi de acordo com as circunstâncias. Aos poucos fui crescendo e a comunidade foi chegando a mim. E foi chegando tão inesperadamente que alguns meses depois, Dom Cabral me pediu que esquecesse daquelas recomendações que tinha feito.
E – O povo acolhia as suas bênçãos!
PE – Sim... Vinham pessoas de várias regiões, inclusive de São Paulo mesmo. Assim foi, até que o atual prefeito da cidade, doutor Juscelino Kubitschek de Oliveira doou um terreno para a construção da Igreja dos Sagrados Corações. A pedra fundamental foi abençoada pelo próprio Dom Cabral, em 16 de maio de 1943.
E – Missão interminável?
PE – Percorria as ruas a pé, pelas trilhas e pelas montanhas da cidade, onde quer que os enfermos se encontrassem, até que em meados do mês de agosto, o enfermo fui eu mesmo. Não havia medicamentos para a febre tifo que tinha contraído e esperei com ansiedade o meu fim. Queria tanto despedir-me do meu amigo e confrade, padre Gil. Ele custou a aparecer. Quando ele surgiu na minha porta, em 30 de agosto de 1943, disse-lhe apenas – “Padre Gil, como demorou a chegar!”. E me despedi. Finalmente, me despedi.
E – Uma vida inteira, uma bandeira de Saúde e Paz! Não foram termos abstratos mas traduzidos em ações imediatas e contínuas. Mais ações e menos palavras.
PE – Padre Damião, Santo Padre Damião do Molokai, foi meu conselheiro em todas as horas. Tão pequena e leve foi a minha missão, mas dediquei todo meu esforço em interceder com a Divina Providência, para aliviar o sofrimento físico e espiritual dos meus semelhantes. Nada mais.
E – Novamente, peço a sua bênção, Venerável e Santo Padre Eustáquio! Reafirmo, perante a humanidade, que o senhor teve o dom de trazer alívio e tranquilidade para tantas pessoas que o procuraram, mediante a sua santidade,  e que tantos e silenciosos milagres realizou. O senhor não se referiu nem uma vez, nesta entrevista, a qualquer feito glorioso que tivesse realizado. Tudo guardado no seu coração, como se nada tivesse acontecido. Pelos Sagrados Corações, descanse em paz.


Referências Bibliográficas
Andrade, José Vicente. Venerável Padre Eustáquio. Congregação dos Sagrados Corações. Belo Horizonte, 2004
http://www.vatican.va/news_services/liturgy/saints/ns_lit_doc_20060615_eustaquio_po.html
http://evangelhoquotidiano.org/main.php?language=PT&module=saintfeast&id=12527&fd=0
http://padreeustaquio.org.br/

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