Alguém ainda se lembra de Helvécio
Daher? Ou melhor, do professor, Helvécio Daher? Ele passou pela vida
como uma sombra. Deixou o quê? E professor deixa alguma coisa? Suas palavras?
Seu pensamento? Sua imagem? São ações escritas ao vento. Evaporam. Volatilizam.
E o mundo gira. Outras vertentes mais importantes afogam o passado. Nem os
dados de nascimento e morte são configurados e disponíveis. Talvez, 1935 a
1985, em Belo Horizonte.
Sofreu paralisia infantil, o que
tolheu seus movimentos. Andava torto, tropeçando, com duas bengalas. O pai o
acompanhava, transportando-o de carro para onde fosse preciso. Assim chegou a
matricular-se no curso de Sociologia da faculdade de Filosofia, que funcionava
no 19º. andar do edifício Acaiaca. Seu pai, atencioso e paciente, parava o
carro na porta do edifício, toda manhã, sob um trânsito intenso e ajudava-o a
descer do carro. Solto, pegava o corredor largo e entrava no elevador. O pai se
despedia e aguardava, no meio dos seus afazeres, a hora de buscar o filho, no
mesmo lugar. Todo dia, com o mesmo humor alegre e cheio de carinho pelo filho
amado.
Após a graduação, chega-se o momento
de iniciar a vida profissional. Tornou-se professor de um dos colégios da
CAMPANHA DE ESCOLAS DA COMUNIDADE. Essa entidade educacional se estendida em
todo o território nacional e tinha por
objetivo fundar ginásios gratuitos. Parece uma utopia. No entanto, tornou-se
uma realidade no território brasileiro, antes de o Ministério da Educação
alterar o currículo de ensino de primeiro e segundo graus.
Como professor, mesmo com as suas
limitações físicas, tornou-se amigo dos alunos e dos colegas professores, pela
sua simplicidade e capacidade de interagir com o mundo dos jovens que
precisavam de apoio para alcançar maior nível de desenvolvimento cultural.
De professor a diretor do colégio
foi um pulo. Daí para integração na diretoria da própria entidade educacional
foi outro pulo imediato. Estava sempre disponível para trabalhar a qualquer
hora e lugar. Nessa época, já não tinha mais o pai para o amparo imediato.
Sempre aparecia alguém nas horas necessárias. Mesmo assim, coordenou as
atividades da Campanha CNEC no estado de Minas Gerais por mais de dez anos.
Pelas suas dificuldades de locomoção, passou a residir num quarto
disponibilizado na entidade. Horário de trabalho, sol a sol. Não, de sol a lua.
Salário? Quando houvesse seria repartido.
Helvécio começou a sentir-se mal de
saúde. Estômago? Rins? Pulmão? Fígado? Um de cada vez, ou todos em ciranda? Um
de cada vez, sem perder a vez. E a coisa continuou mais intensa. A mãe
requisitou-o para sua residência. Como abandonar a Campanha? Despachar em casa?
Trabalhava em casa o dia inteiro, no próprio quarto com mesa grande, ali
colocada. Sempre dizia que estava bem, até que os médicos disseram que ele
precisava aproveitar bem estes belos dias finais de vida. Foi mais ou menos
isso mesmo. Para a mãe foram mais cruéis: “o câncer tomou todos os órgãos
internos. Está vivendo ainda pela sua força mental. Todos os órgãos
inutilizados.”
Helvécio pressentiu o final numa
manhã meio nublada. Chamou a mãe e pediu autorização para doar a quem precisar
qualquer dos órgãos do seu corpo. A mãe, sem chorar, concordava com qualquer
coisa que ele quisesse.
Helvécio então, nesse dia, recebendo a visita
de um grupo de amigos, declarou que, mesmo partindo desta vida, tinha feito uma
declaração, por escrito, como doador
universal de órgãos, para o bem da humanidade.
Os amigos ficaram emocionados diante
da firmeza e da convicção desse ato e mais ainda pela alegria incontida ao
revelar essa doação. Nesse momento,
todos os amigos já sabiam que esses órgãos, infelizmente, não estavam mais em
condições próprias para salvar outras vidas.
Helvécio foi. Todos os seus órgãos
foram com ele, lamentavelmente.
Excelente! argobbo!@ahoo.com.br
ResponderExcluirRogério, texto lúcido como sempre. Mande-me seus telefones preciso falar com meu melhor amigo, ouvi-lo. Grande abraço. Romero Bittar.
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