Esse Fera não passava de
um vira-lata, sem pedigree, mas estimado como se fosse o rei da Mesopotâmia. Tinha afeição ilimitada pelo Marcim, um
garoto avançado, com nove anos incompletos, que cuidava dele, com carinho especial,
todos os dias da sua vida. Era afeição mútua instalada à primeira vista. Marcim não tinha irmão e o Fera, com o seu
temperamento afetivo, supria as carências do garoto. Era fera, mas, para o seu
amo, era guardião.
Foi atropelado na porta de
casa, numa manhã sombria. Marcim o acolheu entre os braços. Não havia sangue,
mas, certamente, ferimentos internos. Fera gemia baixinho, sem forças, com
respiração ofegante.
Marcim ligou imediatamente
para o pai, para pedir socorro. O pai, médico, não podia atender ao chamado,
naquele momento. Retornaria a ligação, logo depois, informou a secretária.. E o
pai esqueceu. Marcim, ou melhor, o Fera, não podia esperar.
Avisou à mãe que iria
tomar as providências e levar o Fera imediatamente a uma clínica veterinária.
- Você não pode ir
sozinho!
- Eu chamo um táxi. Tenho
dinheiro guardado e posso ir agora mesmo.
Sem que a mãe pudesse
imaginar a alternativa, Marcim já tinha chamado o taxi que estava já esperando
à porta. Colocou o Fera numa cesta
grande, forrada com uma toalha azul e saiu em disparada, sem que a mãe pudesse
imaginar para qual clínica ele pudesse ir. Saiu sem endereços, mas saiu. O
taxista devia saber.

- Nada mais a fazer!
- Não pode! Precisa fazer
alguma coisa! Isso não pode ficar assim! Tem que tentar alguma coisa!
- Não há mais jeito. Sinto
muito. Pode voltar com ele pra casa, mas se quiser, podemos providenciar a
cremação dele aqui mesmo.
- Cremação? Isso nunca!
Enquanto vinham as imagens
de tristeza e separação, de perda e abandono, eis que o pai chega à clínica.
- Que aconteceu?
- Um desastre, pai. Nada
pude fazer. Ele morreu nos meus braços.
- Sem problemas... Nós
arranjamos outro cachorro pra você.
- Sem problemas? Então o
senhor pensa que o Fera morto pode ser trocado por um Fera vivo? Nunca. Quero
levar para casa e ficar com ele mais algum tempo.
- Você tem que compreender
que o Ferra, infelizmente, morreu. Temos que tomar as providências necessárias
para o final. Você já está com quase dez anos e precisa compreender.
- Eu compreendo, mas não
concordo. Quero levar o Fera para casa.
- Nosso apartamento é
pequeno, você tem seus deveres ainda hoje por cumprir. Como ficar com o
cachorro morto dentro de casa?
- Cachorro morto dentro de
casa? Ele é meu amigo! Eu posso deixar na área de serviço e depois, de noite,
podemos decidir o que fazer.
- Ainda de noite?

- Não deixa de ser
complicado. Vou respeitar o seu pedido. Certo.
Concordo. Então vamos
Chegaram em casa e Marcim
carregando o Fera numa cesta grande. Pesava bem uns seis quilos. Ele fez
questão de não permitir que ninguém o ajudasse. Procurou um lugar para
depositar a cesta. Uma mesa? A mãe, Dulcina, achou melhor colocar numa cadeira.
Todos foram ver a cara ou melhor o focinho do Fera morto.
Lavaram-se as mãos.
Tomaram-se banhos. Almoçaram em silêncio. A vida parecia correr como de costume,
mas tudo estava tenso demais. À tarde não ficou ninguém em casa. Todos cuidando
das suas obrigações.
A noite chegou e as
pessoas retornaram a casa, apreensivas quanto às providências que deveriam
tomar para se livrarem daquele cachorro morto dentro de casa.
Em assembleia improvisada,
ficou decidido que o enterro seria no jardim, num canto mais afastado do muro. Seria
realizado naquela mesma noite e combinaram com o jardineiro para fazer os
procedimentos, depois das vinte e três horas, quando o silêncio fosse total..

- Dulcina, estamos
esperando você para o meu aniversário. Os convidados estão perguntando por
você. Você se esqueceu de mim, querida?
- Oh! Desculpe, Cidinha.
Aconteceu um imprevisto, um desastre, um atropelamento.
- Quê? Você me assusta.
Que aconteceu?
- Fale baixo porque
estamos em orações no velório, na sala..
- Velório? Pelo amor de
Deus, o que aconteceu?

- Não posso imaginar o que
esteja acontecendo. Você está bem?
- Felizmente, eu estou
bem, mas o Marcim e as meninas estão em prantos.
- Só pode ser brincadeira!
Você está me passando um trote? Uma pegadinha?
- Não! Não! Às vinte e
três horas vai sair o enterro.
- Você me deixa alucinada!
Quem morreu? Nunca vi enterro às vinte e três horas. Onde vai ser esse enterro?
- Vai ser no quintal, bem
perto do muro. Bem afastado. O jardineiro já preparou tudo.
- No quintal? Não suporto
mais nada. Penso que você não está bem! Vou dispensar os meus convidados
rapidamente e vou pra aí. Preciso verificar isso tudo bem de perto.
- Venha mesmo porque o
Marcim vai ficar muito sensibilizado com a sua presença. Será um conforto para
nós. Aguardamos você. Um beijo!
- Espere. Não saia de casa
enquanto eu não chegar. Vou levar o meu filho que é médico e pode articular com
o Dino, seu marido, para as providências. Fique calma porque tudo vai ficar
bem. Pode ter certeza. Beijos.
Dona Cidinha sentiu o
drama e relatou para as amigas na sua festinha. Depois, cada uma das amigas deu
apenas um telefonema. E cada uma das outras, outro telefonema e assim, a rede
estava formada. A amiga Dulcina estava com desconforto mental. Claro, só podia
mesmo estar.
Meia hora depois, dona Cidinha
já estava fazendo parte dos garotos em orações e cânticos fúnebres. Cinco
minutos depois, chega uma vizinha que tinha ficado sabendo. E assim, foram
chegando as amigas, todas empenhadas em dar assistência imediata a dona
Dulcina.
Dona Dulcina teve que
preparar cafezinho para as amigas e o vira-lata Fera jamais teria pensado que o
seu enterro fosse tão concorrido. A sala estava cheia de amigos e amigas.
Marcim agradeceu a todos os presentes e sentiu-se mais confortável quando
retornou a casa, deixando o Fera num lugar tranquilo e rodeado de flores.
Amado Rogério, estou aqui em lágrimas, não me pergunte porque, com certeza não é pela morte do fera, apesar de eu ter me afeiçoado por ele, claro, nem pelo Marcim, que já está confortado. Bem, após estas análises eu já sei por que: porque a sua sensibilidade transborda e nos contagia. Obrigado pela lembrança meu amigo. Seu amigo Romero Bittar.,
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