Autor: Rogério de Alvarenga

Imaginem! O Ouvidor da Corte, um
solteirão! Velho demais pra mim. Pela cara eu julgava que ele era da idade do meu
avô. Não, brincadeira. Gostei mais da roupa dele, das túnicas, das camisas de
punho rendado e todo bordado. Era louro dos olhos azuis. Rico? Nem pensei nisso
quando o vi pela primeira vez. Meu avô disse que ele tinha o poder nas mãos.
Mandava até no governador. Depois, vieram me contar que o nome dele era Tomás.
Nem liguei. Só olhei pra a cara dele uma vez, muito discretamente e sem
interesse nenhum. Era pessoa importante e de respeito na capitania. Se eu fosse
conversar com ele, iria perguntar pelos filhos ou pelos netos. Fiquei sabendo
que ele tinha mais de quarenta anos. Bobagem! Depois, fiquei sabendo que era
disputado em Vila Rica. Penso que as moças da época vislumbravam o cargo dele.
Bobagem. Eu não vou atrás de cargos. Sabe de uma coisa? Numa festa no palácio do governador, pra todo lugar na
sala que eu me dirigia, via logo a cara do Ouvidor perto de mim. Discretamente,
arranjava um jeito e pulava fora. De longe, percebi que ele não tirava os olhos
de mim. Fiquei com medo. Juro que fiquei pensando em tantas outras coisas que
agarrei no braço do meu tio, que estava por perto. A noite passou com músicas e
danças para as pessoas mais velhas. Uma surpresa que me assustou. No dia
seguinte, minha tia me entregou uma carta fechada, com o carimbo da Corte.
Maria Doroteia.

Caí de costas. Fiquei mais
vermelha do que as rubras rosas. Que petulante! No fundo, eu estava lisonjeada
e inchada, como diziam. Minhas tias riram muito. Quando meu avô ficou sabendo,
ele fez um muxoxo de desaprovação. “Você é uma criança! O Ouvidor passou dos
quarenta. Isso não vai dar certo.” Uma palavra do meu avô, uma negativa ou uma
afirmação, eram ordens pra mim. Tive um retrocesso. Depois, começaram a chegar
mais liras para Marília. Com o tempo, passaram a ser dedicadas a Marília de
Dirceu. Ele escrevia liras
constantemente, sempre pensando em mim, em meu suposto nome, uma suposta
Marília. O Ouvidor e vários poetas, juristas, religiosos, militares participavam de uma sociedade literária,
Arcádia, e cada um tinha um pseudônimo. Ele escolheu Dirceu para ele. Assim,
criou o meu nome poético ligado ao dele para compor Marília de Dirceu, como
forma literária. Passei a ser a Marília de Dirceu, consagrada em suas liras.
Uma revelação: todas as liras do Ouvidor, Tomás Antônio Gonzaga foram a mim
dedicadas. Acredita que eu aceitei o namoro? Já tinha aceitado há muito tempo.
Mas, como é que se namorava? Um
adeusinho, um sorriso, um olhar. Nada de beijo roubado. Nesse ponto digo a
verdade. Ficamos noivos, sob os olhares do meu avô e dos meus tios e das minhas
tias. Felicidade total. Conversávamos diariamente pelas nossas janelas, em
gestos, sorrisos, beijos distantes. Agora também é verdade. Tínhamos os lenços
brancos. Era assim o nosso romance, a continuidade do amor de minha primavera
misteriosa. Era feliz, era amada, era louvada. Ele era um noivo apaixonado. Era
uma pessoa que decididamente desejava o lar, a vida tranquila e bucólica.
Casamento marcado. Preparação geral. Paixão! Paixão! Dia marcado para o nosso
casamento. Nessa altura, eu estava também apaixonada, decididamente apaixonada
pelo meu quarentão. Tudo preparado para o nosso casamento. Mas o casamento
infelizmente, não se realizou. Meu
noivo foi preso oito dias antes do dia marcado para as bodas, implicado no
movimento libertário da Inconfidência Mineira. Foi preso, encarcerado,
incomunicável e, em seguida, transferido para o Rio de Janeiro, acorrentado,
apesar do cargo de Ouvidor da Corte e de ser amigo do Governador, Visconde de Barbacena.
Ficaram para mim as suas doces palavras: Nunca mais o vi. O meu coração partido
e as minhas lágrimas não foram suficientes. Os meus familiares eram pessoas de
influência política na capitania. Podiam interceder por ele? Meus tios eram
militares, a serviço do governador e da Corte. Não poderiam interceder por
traidor, por um conspirador. Os bens de todos os inconfidentes foram
imediatamente confiscados. Quem se envolvesse era cúmplice. Tudo um desastre
completo. A prisão inopinada de todos os conjurados e o confisco imediato dos
seus bens. A devassa com todos os seus rigores. A morte horrível de Cláudio
Manuel da Costa, ocorrida na prisão. A condução de todos os presos para o Rio
de Janeiro, algemados e acorrentados. As imundas prisões. A execução espetaculosa
de Tiradentes, alguns anos depois.
O esquartejamento em praça pública. O
sadismo exacerbado, as calúnias, as perseguições políticas, as denúncias
oferecidas para granjear a simpatia do governador. Tudo, um desastre. E o meu amor seria a menor
parte dessas desgraças todas. Minha vida também corria perigo. A ordem geral
era mesmo o recolhimento e o silêncio. Meu noivo sofreu as angústias no
cárcere. A saudade, as dúvidas, as queixas, as lembranças do tempo passado na
bucólica terra fértil, de ovelhas brancas, do puro leite e da fina lã. Suas
esperanças ilusórias. Os interrogatórios. A vil traição. Não restou nem um fio
de esperança. Nenhuma esperança. Meus familiares previam o desfecho da
tragédia. Tive notícia de que ele seria condenado à forca. Como eu poderia ter
um pensamento de alguma felicidade a encontrar nesta vida? Depois, houve a
comutação da pena. Foi condenado ao degredo perpétuo na África. Assim foi
feito. Ele desapareceu para sempre. Eu era realmente, nesse momento, uma noiva
desesperançada! Saudoso tempo passado. Agora, só restaram lembranças. Guardei
os meus lenços brancos, lavados e engomados, numa caixa toda bordada de
borboletas azuis. Deixei-a perto da minha cabeceira e, ao me deitar, abria cada
um deles, absorvia o seu perfume e, suavemente surgia à minha frente a imagem
dele, com seu sorriso de sempre, trazendo uma nova lira, dedicada a Marília de
Dirceu. Não sei quanto tempo assim ficava. Depois, dobrava cada lenço,
conversando com eles. Colocava-os de novo na caixa bordada. Fechava-a
cuidadosamente e sentia que as lágrimas desciam lentamente. Nunca chorei. Era
sempre um pranto silencioso, abafado. As lágrimas não tinham permissão para
cair. Meu mundo passou a ser isso. Suas palavras! No princípio do nosso namoro,
eu fiquei apenas enlevada com a sedução de uma pessoa tão importante no cenário
jurídico e político da capitania. Depois, fui me envolvendo. Finalmente, antes
do desenlace, o amor me trouxe à realidade. Senti então que estava mesmo dentro
de um momento de total felicidade, encontrando um homem a quem eu poderia
entregar a minha vida por inteiro, que poderia desfalecer em seus braços. Seria
amada e desejada por toda uma existência. Infelizmente as portas do destino se
abriram para outros itinerários. Não tive o direito de ser feliz! A felicidade
passou pela minha porta somente uma vez!
As marcas de uma paixão não se
desfazem com um simples estalar de dedos. Um sentimento guardado
silenciosamente é mais difícil de ser retirado do fundo do inconsciente. Vivi
confortavelmente meus oitenta e seis anos como se fosse uma menina de
dezessete. Hoje, ainda brinco de bonecas.

Tenente General Bernardo da Silva Ferrão, avô de Marília de Dirceu, foi detentor de 3 Sesmarias nas Minas Gerais, uma delas na região entre Barão de Cocais e Itambé, em 23 de Julho de 1752. Tal sesmaria foi concedida pelo Capitão General Gomes Freire de Andrade (Governador da Capitania do Rio de Janeiro e Minas gerais). Consta na revista do Arquivo Público Mineiro - II Volume - Ano:1933. O compositor Noel Rosa, consta como um de seus descendentes. Parabéns por contribuir no resgate da memória desta grande figura das Minas Gerais: Marília de Dirceu.
ResponderExcluirSe fosse hj, esse cara seria preso por pedofilia....
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