Tudo,
um desastre. E o meu amor seria a menor parte dessas desgraças todas. Minha
vida também corria perigo. A ordem geral era mesmo o recolhimento e o silêncio.
Meu noivo sofreu as angústias no cárcere.
Nem pensem que vão ficar sabendo
tudo a meu respeito, a respeito da Marília de Dirceu, construída pelo poeta e
Ouvidor da Corte em Vila Rica, Tomás Antônio Gonzaga!
Há muitas coisas que tenho ainda
medo de revelar. Meu nome verdadeiro é Maria Doroteia Joaquina de Seixas. Para
a literatura, hoje, sou apenas Marília de Dirceu. Naquela época, final do
século dezoito, eu aprovava esse apelido e me sentia o máximo. Depois, esse
nome foi pesando tanto nas minhas lembranças, que não passa agora de ilusões,
de poesia, de brumas do tempo.
Assim, trago o coração cheio de
promessas... Como posso imaginar que tantas dificuldades do passado pudessem
fazer a minha estrela brilhar nesse céu maravilhoso. Com o falecimento de minha
mãe, quando eu era muito pequena, ainda, eu e os meus quatro irmãos passamos a
residir com o meu avô, tenente-general Bernardo da Silva Ferrão. Mais tarde,
meu tio muito amado, João Carlos da Silva Ferrão e minhas tias, cuidaram de
mim. Meu lar foi cheio de carinhos e compreensão.
Vivi em berço abençoado, Não havia
nenhuma escola para moças. Eram proibidas. Então, já me sentia formada aos 12
anos, pronta e preparada para namorar e casar. E para casar precisava namorar.
Pois namorei. Namorei mas não gostei de ninguém. Foi aí que apareceu a figura
do Ouvidor.
Imaginem! O Ouvidor da Corte, um solteirão!
Velho demais pra mim. Pela cara eu julgava que ele era da idade do meu avô.
Não, brincadeira. Gostei mais da roupa dele, das túnicas, das camisas de punho
rendado e todo bordado. Era louro dos olhos azuis. Rico? Nem pensei nisso
quando o vi pela primeira vez. Meu avô disse que ele tinha o poder nas mãos.
Mandava até no governador. Depois, vieram me contar que o nome dele era Tomás.
Nem liguei. Só olhei pra a cara dele uma vez, muito discretamente e sem
interesse nenhum. Era pessoa importante e de respeito na capitania. Se eu fosse
conversar com ele, iria perguntar pelos filhos ou pelos netos. Fiquei sabendo
que ele tinha mais de quarenta anos. Bobagem!
Depois, fiquei sabendo que era
disputado em Vila Rica. Penso que as moças da época vislumbravam o cargo dele.
Bobagem. Eu não vou atrás de cargos. Sabe de uma coisa? Numa festa no palácio do governador, pra todo lugar na
sala que eu me dirigia, via logo a cara do Ouvidor perto de mim. Discretamente,
arranjava um jeito e pulava fora. De longe, percebi que ele não tirava os olhos
de mim. Fiquei com medo. Juro que fiquei pensando em tantas outras coisas que
agarrei no braço do meu tio, que estava por perto. A noite passou com músicas e
danças para as pessoas mais velhas. Uma surpresa que me assustou. No dia
seguinte, minha tia me entregou uma carta fechada, com o carimbo da Corte.
Maria Doroteia.
Abri na frente de todos na casa:
“Bela
Maria Doroteia! Impossível apagar da
minha mente a deslumbrante presença da mais linda jovem de Vila Rica. Admirei o
encanto dos teus cabelos, o brilho dos teus olhos, a rosa púrpura em teus
lábios. A festa do Palácio não teria nada para mim, se lá não estivesses
presente. Marília, se tens a beleza da natureza é um favor. Mas, aos vindouros
teu nome passa é só por graça do Deus do amor, que terno inflama a mente e o
peito do teu pastor. Com todo respeito do teu admirador, Tomás Antônio Gonzaga
– Ouvidor da Corte.’’
Caí de costas. Fiquei mais vermelha
do que as rubras rosas. Que petulante! No fundo, eu estava lisonjeada e inchada,
como diziam. Minhas tias riram muito. Quando meu avô ficou sabendo, ele fez um
muxoxo de desaprovação. “Você é uma criança! O Ouvidor passou dos quarenta.
Isso não vai dar certo.” Uma palavra do meu avô, uma negativa ou uma afirmação,
eram ordens pra mim.
Tive um retrocesso. Depois,
começaram a chegar mais liras para Marília. Com o tempo, passaram a ser
dedicadas a Marília de Dirceu. Ele
escrevia liras constantemente, sempre pensando em mim, em meu suposto nome, uma
suposta Marília.
O Ouvidor e vários poetas, juristas,
religiosos, militares participavam de
uma sociedade literária, Arcádia, e cada um tinha um pseudônimo. Ele escolheu
Dirceu para ele. Assim, criou o meu nome poético ligado ao dele para compor
Marília de Dirceu, como forma literária. Passei a ser a Marília de Dirceu,
consagrada em suas liras.
Uma revelação: todas as liras do
Ouvidor, Tomás Antônio Gonzaga foram a mim dedicadas. Acredita que eu aceitei o
namoro? Já tinha aceitado há muito tempo. Mas, como é que se namorava? Um adeusinho, um sorriso, um olhar. Nada de
beijo roubado. Nesse ponto digo a verdade. Ficamos noivos, sob os olhares do
meu avô e dos meus tios e das minhas tias. Felicidade total.
Conversávamos diariamente pelas
nossas janelas, em gestos, sorrisos, beijos distantes. Agora também é verdade.
Tínhamos os lenços brancos. Era assim o nosso romance, a continuidade do amor
de minha primavera misteriosa. Era feliz, era amada, era louvada. Ele era um
noivo apaixonado. Era uma pessoa que decididamente desejava o lar, a vida
tranquila e bucólica.
Casamento marcado. Preparação geral.
Paixão! Paixão! Dia marcado para o nosso casamento. Nessa altura, eu estava
também apaixonada, decididamente apaixonada pelo meu quarentão.
Tudo preparado para o nosso
casamento. Mas o casamento infelizmente, não se realizou. Meu noivo foi preso oito dias antes do dia
marcado para as bodas, implicado no movimento libertário da Inconfidência
Mineira.
Foi preso, encarcerado,
incomunicável e, em seguida, transferido para o Rio de Janeiro, acorrentado,
apesar do cargo de Ouvidor da Corte e de ser amigo do Governador, Visconde de
Barbacena.
Ficaram para mim as suas doces
palavras: Nunca mais o vi. O meu coração partido e as minhas lágrimas não foram
suficientes. Os meus familiares eram pessoas de influência política na
capitania. Podiam interceder por ele? Meus tios eram militares, a serviço do
governador e da Corte. Não poderiam interceder por traidor, por um conspirador.
Os bens de todos os inconfidentes
foram imediatamente confiscados. Quem se envolvesse era cúmplice.
Tudo um desastre completo. A prisão
inopinada de todos os conjurados e o confisco imediato dos seus bens. A devassa
com todos os seus rigores.
A morte horrível de Cláudio Manuel
da Costa, ocorrida na prisão. A condução de todos os presos para o Rio de
Janeiro, algemados e acorrentados. As imundas prisões.
A execução espetaculosa de
Tiradentes, alguns anos depois.
O esquartejamento em praça pública.
O sadismo exacerbado, as calúnias, as perseguições políticas, as denúncias
oferecidas para granjear a simpatia do governador.
Tudo, um desastre.
E o meu amor seria a menor parte
dessas desgraças todas.
Minha vida também corria perigo.
A ordem geral era mesmo o
recolhimento e o silêncio. Meu noivo sofreu as angústias no cárcere.
A saudade, as dúvidas, as queixas,
as lembranças do tempo passado na bucólica terra fértil, de ovelhas brancas, do
puro leite e da fina lã.
Suas esperanças ilusórias.
Os interrogatórios. A vil traição.
Não restou nem um fio de esperança. Nenhuma esperança.
Meus familiares previam o desfecho
da tragédia. Tive notícia de que ele seria condenado à forca.
Como eu poderia ter um pensamento de
alguma felicidade a encontrar nesta vida?
Depois, houve a comutação da pena.
Foi condenado ao degredo perpétuo na África. Assim foi feito. Ele desapareceu
para sempre.
Eu era realmente, nesse momento, uma
noiva desesperançada!
Saudoso tempo passado. Agora, só
restaram lembranças.
Guardei os meus lenços brancos,
lavados e engomados, numa caixa toda bordada de borboletas azuis. Deixei-a
perto da minha cabeceira e, ao me deitar, abria cada um deles, absorvia o seu
perfume e, suavemente surgia à minha frente a imagem dele, com seu sorriso de
sempre, trazendo uma nova lira, dedicada a Marília de Dirceu.
Não sei quanto tempo assim ficava.
Depois, dobrava cada lenço, conversando com eles. Colocava-os de novo na caixa
bordada. Fechava-a cuidadosamente e sentia que as lágrimas desciam lentamente.
Nunca chorei. Era sempre um pranto silencioso, abafado. As lágrimas não tinham
permissão para cair.
Meu mundo passou a ser isso. Suas
palavras! No princípio do nosso namoro, eu fiquei apenas enlevada com a sedução
de uma pessoa tão importante no cenário jurídico e político da capitania.
Depois, fui me envolvendo.
Finalmente, antes do desenlace, o
amor me trouxe à realidade. Senti então que estava mesmo dentro de um momento
de total felicidade, encontrando um homem a quem eu poderia entregar a minha
vida por inteiro, que poderia desfalecer em seus braços. Seria amada e desejada
por toda uma existência.
Infelizmente as portas do destino se
abriram para outros itinerários.
Não tive o direito de ser feliz! A
felicidade passou pela minha porta somente uma vez!
As marcas de uma paixão não se
desfazem com um simples estalar de dedos.
Um sentimento guardado
silenciosamente é mais difícil de ser retirado do fundo do inconsciente.
Vivi confortavelmente meus oitenta e
seis anos como se fosse uma menina de dezessete.
Hoje, ainda brinco de bonecas.
Guardo pequenos bordados, lenços brancos. Tudo por compulsão. Um pedaço de pano
branco? Posso bordá-lo com uns peixinhos
do mar. Para quê? Nem eu mesma sei.
Será que meus últimos suspiros foram
pensando nele? Talvez eu tivesse outras formas, outros espectros para avivar a
minha memória. Nem posso afirmar que o tenha visto nos meus momentos finais, ao
se apagarem as minhas luzes. Não chegou a mim nenhuma mensagem de alegria ou de
dor. Ele deve ter tido uma vida afortunada na África.
Nossos caminhos se desviaram,
infelizmente. Que me resta? Ainda vivi alguns anos.
Finalmente, em 1853, me despedi da
minha terra, do meu eterno noivado. Mas, na vida não há passagem de retorno. Em
vão, penso reviver o amor ardente. Impossível.
Nem os dedos das minhas mãos me
obedecem para fazer uma simples carícia, naquele rosto lindo, nas suaves
expressões faciais de ternura infinda.
Como posso dizer adeus à vida, sem
ter realizado um simples sonho de adolescente?
Minhas mãos estão trêmulas e o ar
que respiro não aplaca os meus suspiros.
Infelizmente, tenho que dizer adeus,
assim mesmo. Digo finalmente para os jovens amantes que aproveitem a vida
enquanto houver tempo. Depois disso, vem a desesperança. Inevitavelmente.
Essa é a grande trapaça desta vida.
Esperanças acumuladas, nunca
realizadas. Desculpe-me, tenho que sair. Não estou suportando a mágoa das
minhas lembranças. Adeus!
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